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As vaquinhas ‘Cornélia’ e ‘Mimosa’

Era uma vez, duas vaquinhas – Cornélia e Mimosa – que passavam os dias a pastar, serenamente, num dos locais mais belos do mundo: as margens da Lagoa das Furnas.

Cornélia era uma vaquinha do povo, nem pobre, nem rica, digamos que remediada. O seu dono trabalhava de sol a sol, não tinha fins-de-semana ou férias e pagava uma renda aos proprietários das terras onde Cornélia e as suas irmãs comiam erva para crescerem e ficarem bonitas. Apesar de tudo, não se queixava da vida. A agro-pecuária era o seu ganha-pão, nunca tinha conhecido outro e era isto que queria fazer até ao fim. Mimosa, pelo contrário, era uma vaquinha com laivos de aristocracia, nome de família e pergaminhos ancestrais. Ela e as suas irmãs engordavam, nas terras do seu dono, herança antiga que tinha de ser rentabilizada.

E os anos foram passando, com o leite das vaquinhas a jorrar, abundantemente.

Mas, um dia, chegou junto delas um Senhor, de fato e gravata e disse-lhes assim: ‘Cornélia, tu estás a eutrofizar a nossa linda Lagoa! Tu e as tuas irmãs vão ter que sair deste lugar e, se não for a bem, terá que ser a mal’. Cornélia abriu muitos os olhos de espanto e perguntou: ‘E porque é que a Mimosa pode ficar?’. O senhor respondeu: ‘Porque a Mimosa é uma vaquinha asseada, com hábitos de higiene que tu nunca aprendeste e a Lagoa até agradece as escorrências que dela lhe chegam. Além disso, o dono da Mimosa é uma pessoa importante, enquanto o teu é um cidadão anónimo e, portanto, não podem ser tratados da mesma maneira. Tens que perceber que, no nosso mundo, as leis não são iguais para todos’. Cornélia sorriu, misteriosamente e pensou lá para os seus botões: ‘Finalmente, começo a perceber o que é a luta de classes!’

E, de facto, assim foi. Depois de muitas lutas, confusões, contradições, ameaças, tribunais, reuniões, permutas, compras, indemnizações e outras coisas afins, Cornélia e quase todas as suas irmãs foram abatidas, sem dó, nem piedade, porque o dono não tinha outra terra onde as pôr a pastar, tendo sido obrigado a procurar outro modo de ganhar a vida. Incompreensivelmente (ou não…), a Mimosa e todas as suas irmãs permaneceram naquele lugar paradisíaco e até consta que a elas se vieram juntar muitas outras (todas filhas de gente importante, é claro), presume-se que para fazerem companhia umas às outras.

Entretanto, a Lagoa das Furnas continua na sua lenta agonia: de acordo com comunicados oficiais (muitos deles assinados pelo Senhor de fato e gravata que deu início a esta inacreditável história), uns dias, está eutrofizada ou a caminho disso; outros dias, está quase curada ou de boa saúde. Tudo depende da circunstância e dos interesses em causa.

Esta é uma história simples, como simples são todas as histórias verdadeiras.

Quem faz questão de complicar tudo, fazendo perguntas incómodas, pedindo documentos esquecidos dentro de gavetas, levantando dúvidas sobre a vontade genuína de salvar a Lagoa das Furnas de uma morte anunciada há décadas, apontando o dedo a um conjunto de incoerências e de incongruências que ninguém, na plena posse das suas faculdades mentais e de boa-fé, pode compreender, são meia dúzia de inconformados/as que continuam a andar por aí…

E como todas as histórias têm que ter um final feliz, o fim desta é fácil de adivinhar: o Governo Regional decreta que a causa da eutrofização da Lagoa das Furnas é a desestabilização provocada, na sociedade, por meia dúzia de inconformados/as.

A família Mimosa nada tem a haver com este problema!

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Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Deputada à Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, entre 2008 e 2018.
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