Comecemos pelo fim: as vacinas contra a covid-19 funcionam e o seu efeito já se sente ao nível dos internamentos em Portugal. A vacinação em massa é, portanto, o objetivo urgente para combater a pandemia. O que devemos fazer para o alcançar? É sobre isso que quero falar.
As vacinas já estão a salvar vidas no nosso país e no mundo, mas a sua escassez ainda deixa indefesas milhões de pessoas. Em Portugal, como em quase todo o mundo, as vacinas chegam a conta gotas. O plano nacional de vacinação contra a covid-19 ficará, na melhor das hipóteses, pela metade do que era previsto para o primeiro trimestre deste ano.
O problema não é a falta de encomendas, como várias vezes tem sido repetido. Bem, pelo contrário, podíamos até acusar alguns países de ter a vontade de açambarcar vacinas tais são as quantidades que contratualizaram às farmacêuticas. A União Europeia encomendou 3,5 doses por habitante, os EUA, 3,7, o Japão, 2,3, ou o Reino Unido, 5,5 doses por habitante. E estas encomendas surgiram muito antes das vacinas estarem testadas e ou serem aprovadas pelas respetivas autoridades de saúde. Deve-se ressalvar, ainda, que as farmacêuticas aceitaram chorudos pagamentos quando assinaram o calendário para a entrega das centenas de milhões de doses que, agora, estão a chegar com atraso.
Se o problema não está do lado da procura, é óbvio que está do lado da oferta. As farmacêuticas queixam-se da falta de capacidade de produção. O ritmo a que as vacinas são produzidas está muito longe do que foi contratualizado e ainda mais do que era preciso à escala mundial. É possível produzir em maior quantidade?
A pergunta anterior merece duas respostas diferentes. Primeiro, sendo duvidoso que as farmacêuticas estejam a fazer o possível para cumprir o que tinham prometido porque parece que há vendas paralelas em que prioridade é dada a quem esteja disposto a pagar mais no mercado, é alegado que a capacidade de produção das fábricas está no limite. Segundo, há várias fábricas de outros grupos económicos que já se mostraram disponíveis para participar no esforço de produção - segundo especialistas, a capacidade mundial de produção de vacinas é excedentária e não está a ser usada para esta urgência. O que falta é a partilha da tecnologia para se poder multiplicar os locais de produção e, com isso, chegar mais rápido a biliões de pessoas que precisam da vacinação.
Já percebemos que a partilha da tecnologia das farmacêuticas não está nas suas intenções. As patentes são a garantia do monopólio e o lucro não pode ser colocado em causa, nem que seja por uma pandemia. No entanto, o investimento para o desenvolvimento e a testagem das vacinas foi feito sem risco para estas multinacionais. Houve muito investimento público e uma garantia de compra qualquer que fosse a eficácia das vacinas. Os cidadãos pagam, mas não mandam. Mas não tem de ser assim.
Ao contrário do que dizem, a legislação sobre a propriedade industrial não deixa os Estados de mãos atadas. Há mais de cem anos que situações como esta que enfrentamos, de catástrofe, serviram para introduzir nesta legislação figuras jurídicas como a licença obrigatória em casos em que esteja em causa o interesse público ou seja de importância para a Saúde Pública. Haja vontade política, não estamos condenados a esta escassez de vacinas.
O Governo português, estando na presidência do conselho da União Europeia pode e deve tomar a dianteira do debate que liberte as patentes das vacinas, aumentando drasticamente a produção, multiplicando pelo globo essa capacidade e permitindo uma rápida vacinação de toda a população do mundo. Será que António Costa ouvirá o apelo de António Guterres ou da OMS? As vidas humanas valem mais do que o lucro das farmacêuticas.
Para futuras pandemias, que agora se sabe podem estar à espreita, a investigadora Teresa Summavielle apresentou um número: 45 milhões de euros. É esse o investimento que seria necessário para se produzir uma vacina em Portugal. E, assegura a cientista, o nosso país tem “absoluta capacidade de desenvolver”. Boas notícias para o futuro, saibamos prevenir em vez de remediar. Há investimento público mais importante do que este?
Artigo publicado no Público a 12 de março de 2021.