Uma greve nos “países liberais”

porIgor Constantino

30 de abril 2025 - 12:49
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No dia 23 de Abril fizemos uma forte greve na Fokker – Países Baixos (indústria aeronáutica centenária e em muito parecida às OGMA de Alverca), contra um novo “plano social” (novilíngua para vaga de despedimentos), que propõe uma grande redução do valor das indemnizações.

Greve na Fokker
Greve na Fokker - Igor Constantino

A política em Portugal inquinou-se tanto à direita que qualquer proposta de intervenção do Estado na economia leva com o anátema de “comunismo” radical. Foi preciso o Bloco de Esquerda invocar o exemplo dos tectos às rendas nos Países Baixos (tantas vezes um exemplo por ser mais “liberal” na economia), para todos se lembrarem que, afinal, cá na Holanda e noutras províncias, essas medidas não resultam porque, pasme-se, os senhorios contornam a lei, aldrabam, fogem à regulação, os tribunais são ineficientes a actuar, etc. Como é óbvio, esta política nos Países Baixos não resolveu imediatamente a crise da habitação, mas foi um passo na direcção certa que necessita de medidas complementares, de mais habitação pública, e acima de tudo, organização e luta da parte da população trabalhadora - exactamente o que o Bloco de Esquerda propõe em Portugal, pior país da OCDE para o povo comprar casa. Serve este intróito apenas para dizer que até nos “países liberais” o Estado intervém na economia, e muito. Mas essa intervenção “social-democrata” não faz desaparecer a luta de classes. Hoje relato outra prova disso: aqui também há greves!

Há uma vila na Holanda do Sul onde faz tempo que se ouve muito português: Papendrecht, sede da Fokker, indústria aeronáutica centenária e em muito parecida às OGMA de Alverca do Ribatejo. Ambas foram indústrias independentes, inovadoras, com tempos gloriosos que já lá vão, mas que no início dos anos 2000, num momento de crise, foram compradas por uma gigante multinacional, as OGMA pela brasileira Embraer, a Fokker pela inglesa GKN. No dia 23 de Abril fizemos uma forte greve na Fokker[1], contra um novo “plano social” (novilíngua para vaga de despedimentos), que propõe uma grande redução do valor das indemnizações.. As negociações são complexas, mas basicamente, a proposta de indemnizações (de dias de salário por cada ano trabalhado) começariam apenas então a aproximar-se do que em Portugal já são desde a troika. Ainda assim, os supostamente liberais trabalhadores “holandeses” em vez de se conformarem com esse “ajuste de mercado”, comer e calar, ou procurar outro trabalho mais vantajoso, teimosos, contrariam a narrativa: põem em causa a “liberdade económica” da empresa de nos explorar mais, fazendo greve, à antiga, essa coisa tão “démodé”, tão século passado.

Não é só na forte intervenção estatal no mercado de habitação que os Países Baixos inovam. Pelas lides do sindicalismo há uns anos, ainda assim fiquei confuso por o panfleto da central sindical FNV mandar fazer inscrição para fazer greve… Quando questionei se mesmo quem não fosse sindicalizado podia fazer greve, quase nem entenderam a pergunta, de tão absurda. Claro que é legal fazê-lo. Mas a inscrição serve sim, claro, para receber parte do salário perdido no dia de greve, pago pelos fundos do sindicato. É prática comum por aqui. Assim como o é fazer campanhas de sindicalização em que se paga aos sócios um incentivo de 10€ por cada novo membro que inscrevam. Para os políticos “liberais” portugueses, tudo isto devia motivar a criminalização imediata desta esquerdalha toda. Afinal, estão a perverter o mercado de trabalho e a natural troca de emprego por agentes livres que buscam maximizar os seus benefício, usando fundos que não são de cada trabalhador individualmente, mas sim duma entidade colectiva e colectivista que opera fora das leis do mercado pois não busca o lucro, e logo perverte todo o sistema - chama-se “sindicato”, coisa estranha.

O pragmatismo e típico descaramento neerlandês também tem destas coisas boas. Fazemos greve para fazer a empresa ceder, prejudicando-a a esta, não a nós, obviamente. E se tivermos mais sócios incentivando o activismo, por que não? Nem na União Soviética os salários e o dinheiro desapareceram de um dia para o outro, nem os incentivos à produtividade (o famoso Stakhanovismo, rapidamente levado ao extremo pela burocracia estalisnista). Que mal tem, então, no capitalismo, fazer uso dos seus próprios métodos, para o combater? Dos defensores do capital espera-se todo o tipo de ataque, mas mais me aborrece a excessiva ortodoxia de muitos camaradas sindicalistas de esquerda que fui conhecendo, que sempre viam com desconfiança este tipo de políticas de organização sindical inovadoras, como os fundos de greve, deixando-os assim apenas para os “novos sindicatos”, que muitos deles de independentes não têm nada, enfraquecendo o sindicalismo combativo e de esquerda.

Mas nem tudo são túlipas. As condições de trabalho e salariais da Fokker pioraram nos últimos anos, mas a experiência da imigração torna tudo mais relativo: os piores relatos das maiores injustiças na Fokker, parecem uma maravilha se comparados à exploração desenfreada das OGMA. Dias de férias, indemnizações por despedimento, licenças de parentalidade, não são muito diferentes entre os dois países na lei geral. Mas aqui há muitos mais trabalhadores cobertos por contratação colectiva, de sector ou de empresa, bastante mais vantajosa; na Fokker, por exemplo, são 40 dias de férias pagos (sim, isso mesmo), face aos 20 da lei geral. Hoje, a Fokker ocupa uma posição subalterna e dependente dos gigantes estrangeiros da indústria aeronáutica. Ainda assim, nós, os muitos que trocaram as OGMA pela Fokker, fazemos aqui o mesmo trabalho com melhores condições e a ritmos muito mais saudáveis, com salários astronomicamente maiores. Ao contrário do que pensam alguns reacionários de mãozinha de pele de doutor que nunca pegaram numa ferramenta, isto não se deve ao facto dos emigrantes portugueses trabalharem mais depressa no estrangeiro, ou os gestores serem especialmente brilhantes. É porque, claro, mesmo dentro do sector aeronáutico, realizamos trabalhos muito mais especializados, que acrescentam mais valor, de tecnologia mais avançada, mais cara, menos intensiva em trabalho físico, mais digitalizada, com mais e melhores ferramentas, e mais automação, que necessita de muito mais investimento em capital fixo, que Portugal não tem. E sim, com 40 dias de férias, e até greves, ainda assim a “produtividade” é maior. É obra.

Nota:
[1]https://www.ad.nl/papendrecht/staking-treft-gkn-fokker-volgens-medewerkers-hard-groot-deel-van-de-fabriek-ligt-stil~a4096993/?referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com%2F

Igor Constantino
Sobre o/a autor(a)

Igor Constantino

Operário do sector aeronáutico, ex-ferroviário, ativista sindical, estudante de Filosofia
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