Está aqui

Turismo, especulação e a falta de habitação

O boom turístico tem um lado negro que engloba a precariedade laboral e os salários baixos, ou a negação do direito à habitação a uma parte importante das populações das nossas cidades.

O número de visitantes das nossas cidades não para de aumentar. Dados recentemente divulgados dão conta da realidade que as populações já sentiam na pele. A pressão turística de Porto ou Lisboa é maior do que a existente em Londres ou em Barcelona.

Por cada habitante da cidade Lisboa há nove turistas que a visitam. No Porto, são oito turistas por cada habitante. A comparação com os números de Londres é ilustrativa da diferença - a cidade recebe quatro turistas por cada visitante -, enquanto em Barcelona o rácio é de cinco turistas para cada habitante.

Os números em causa tornam incontornável o debate sobre os efeitos do turismo massificado na vida das nossas cidades. Ninguém negará a influência que o turismo está a ter na nossa dinâmica económica, no aumento das exportações, nem a ajuda que dá na redução do desemprego. Mas, na eterna discussão entre o copo meio cheio e o copo meio vazio, quem se focar apenas nas virtudes do turismo, é porque não quer fazer o debate com a seriedade devida.

O boom turístico tem um lado negro que engloba a precariedade laboral e os salários baixos, ou a negação do direito à habitação a uma parte importante das populações das nossas cidades. Esse direito fundamental fica em causa com a especulação imobiliária que se instala à boleia do alojamento local, da proliferação de hotéis e dos hostels que nascem em cada esquina.

O melhor exemplo é a evolução do preço para compra ou arrendamento de habitação nas cidades de Lisboa ou Porto. A especulação está a atirar as pessoas para fora das cidades: é incomportável acompanhar a escalada dos preços. Segundo o padrão dos rendimentos nacionais, exige-se preço de luxo para uma casa modesta.

É certo que os interesses imobiliários nunca declararam tréguas ao direito à habitação. Pelo contrário, sempre lhe apontaram as armas. Não podemos esquecer, por exemplo, o calvário das populações de bairros da Amadora (Santa Filomena ou 6 de maio). No primeiro caso, as máquinas já destruíram todas as casas, no segundo caso estão a meio caminho do mesmo objetivo. Para trás ficam famílias sem casa, despejadas de um teto.

Contudo, a pressão turística amplificou a especulação imobiliária. A tempestade perfeita criou-se quando os interesses imobiliários tiveram um enorme brinde à sua ganância com a lei das rendas de Assunção Cristas. Carta-branca aos especuladores, cartão vermelho ao direito à habitação, cortesia de PSD e CDS.

Há vários exemplos em que a utilização desta lei dos despejos serviu para defender interesses especulativos, que resultam da pressão turística. Um deles é o do bairro do Bacalhoeiro, na Costa de Caparica, em Almada. Vinte famílias receberam uma carta de despejo para que seja construído "um complexo de acomodações residenciais e turísticas, capitalizando o enorme aumento do turismo no país".

Um outro exemplo, mais caricato, é o que tem sido protagonizado pela Fidelidade. Ainda se lembra desta seguradora que era pública e fazia parte da Caixa Geral de Depósitos? Depois da vergonhosa privatização feita por PSD e CDS, em que a Fosun comprou a Fidelidade com o dinheiro da própria Fidelidade, agora é com a especulação imobiliária que procuram o lucro fácil .

A Fidelidade detém vários prédios e quer cavalgar a crista da onda especulativa. Para isso, prepara-se para despejar dezenas de famílias em zonas onde a pressão imobiliária é grande. Em Loures, são 158 famílias que estão na calha para o despejo. Em Lisboa, são 1500 frações que estão em causa.

A especulação não pode levar a melhor, nem à boleia do boom turístico. Para isso, é necessário garantir que a pressão turística não destrói os direitos da população residente. Isso só é possível com escolhas públicas que libertem o país da especulação imobiliária.

O Parlamento já discutiu várias vezes o direito à habitação, mas o PS tem sempre adiado as conclusões, dando espaço para que a especulação continue a ditar as regras. As alterações das regras do alojamento local continuam a marinar na comissão parlamentar e as alterações à lei do arrendamento são sempre adiadas em nome de um momento mais oportuno que nunca chega.

Enquanto esperarmos Godot, assistiremos ao êxodo das nossas cidades e à descaracterização do que as torna únicas e atrativas. Isso é que poderá acabar por matar a galinha de ovos de ouro que é o turismo.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” de 5 de abril de 2018

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
Comentários (1)