Está aqui

Tiro no pé

Fazer da Constituição o centro da táctica num contexto de crise não lembra ao diabo.

Sempre que o PSD muda de gerência, a primeira tentação do chefe é ‘rever a Constituição’. Passos Coelho não foi o primeiro nem será o último. Deixemos, portanto, de lado os elogios laudatórios de quem vê nesta trivial operação laranja sinais de rasgo e arrojo.

Antes pelo contrário.

Fazer da Constituição o centro da táctica num contexto de crise não lembra ao diabo. Não é por acaso que o CDS, um partido de estrutura ideológica bem mais vincada do que a do PSD, não se meteu por aí. Eles sabem o que é óbvio: nem povo, nem capitalistas, nem nano, micro ou pequenos e médios empresários vêm na Constituição a causa ou a salvação para os seus problemas domésticos. Nem o tema é popular, nem ele tem relevância prioritária para os agentes económicos.

O mistério adensa-se mais quando se olha para o calendário.

Por um lado, temos um governo condenado pela opinião pública que apenas sobrevive porque não se podem realizar eleições legislativas nas proximidades de uma disputa presidencial. Neste contexto, por que ‘atira ao lado’, ou ‘tão lá para a frente’, o PSD?

Por outro lado, temos um PR que quer a reeleição como ‘Presidente de todos os portugueses’ e não em ruptura com pelo menos metade do país. Por que abre Passos Coelho os derradeiros ajustes de contas com a revolução de Abril? Que ganha Cavaco Silva com isso, senão uma enxaqueca de longa duração?

Se a agenda é duvidosa e o calendário um desastre, que dizer de uma proposta que fará regressar o PSD à luta de facções? Claro que a contestação não toca nas matérias económicas e sociais. Ninguém no actual PSD verte uma lágrima pelo fim da ‘justa causa’ no despedimento, pela eliminação da obrigação do Estado de manter um ‘sistema público de ensino’ ou porque a saúde deixa de ser ‘tendencialmente gratuita’. A discórdia concentra-se, outrossim, na vertente institucional. A história do PSD escreveu-se contra a possibilidade de o PR demitir governos por vontade e fazer governos por medida. Tocar em Sá Carneiro só pode dar mau resultado, em particular quando a parte derrotada do PSD prefere mesmo um regime ‘quase presidencial’ – o que mais se assemelha a uma ‘solução providencial’ para tempos de crise.

Os equilíbrios e desequilíbrios de regime dariam um debate muito interessante no Grémio Literário, não se desse o facto de o líder fáctico da direita, Cavaco Silva, passar bem sem ele. Manuel Alegre já o desafiou a pronunciar-se, e dificilmente o silêncio deixará de ter o seu preço.

A escolha do PSD tem, assim, uma única coerência – dar a José Sócrates o sopro de vida de que carece à frente de um Governo moribundo. De PEC em PEC e SCUT em SCUT, a colaboração ao centro exige, paradoxalmente, uma guerra de alecrim e manjerona. Ela aí está e o PSD nem sabe no que se meteu.

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputado, dirigente do Bloco de Esquerda, jornalista.
(...)