1. Na semana passada, Miguel Portas representou o grupo da Esquerda Unitária (GUE/NGL) nas negociações para uma resolução de compromisso sobre a Líbia e no debate em plenário.
Para quem não saiba, cada bancada apresenta a sua resolução e depois negoceia-se. Só se votam as resoluções de grupo se não existir compromisso ou este for chumbado. No caso da Líbia, o problema nem se punha: por razões diferentes, todas as bancadas procuraram um compromisso.
2. A maioria dos grupos - conservadores, direita tradicional, liberais e verdes - queriam que a resolução defendesse explicitamente uma zona de exclusão aérea independentemente de um mandato do Conselho de Segurança das Nações Unidas e da especificação dos contornos dessa putativa decisão. Por outras palavras, existia uma razoável maioria no Parlamento Europeu para aprovar uma moção intervencionista a menos de 24 horas de um Conselho Europeu que iria decidir sobre o assunto. A importância desta Resolução decorria precisamente de poder ser usada como meio de pressão pelos governos que defendiam a intervenção.
3. O GUE/NGL era o único grupo parlamentar com uma posição contrária à criação de uma zona de exclusão aérea. Os socialistas, por seu lado, encontravam-se divididos. Por isso propuseram uma redacção cautelosa: a zona de exclusão foi apresentada como "possibilidade" e não como "exigência" e subordinada a um objectivo estrito - "impedir o regime de atacar a população civil". O parágrafo impunha ainda que esta eventual medida fosse "conforme com um mandato das Nações Unidas", e que devia "assentar numa coordenação com a Liga Árabe e a União Africana (...) que deveriam conduzir os esforços internacionais".
Entre esta posição - a que constou do compromisso final - e a defesa de uma intervenção militar da NATO, não é difícil descortinar as diferenças. A sério, é a que mede a distância entre a verdade e a calúnia; a brincar, é a que mede a fértil imaginação de alguém que acorda diariamente com uma única obsessão: "como é que eu, Renato, os vou tramar hoje"?
4. Em face da concreta relação de forças na mesa de negociação, ou a esquerda se desinteressava do assunto - e o resultado mais do que provável seria um parágrafo imposto pelas forças mais à direita, neste caso com apoio dos verdes - ou procurava segurar e melhorar a versão proposta pelos socialistas.
Foi com pleno sentido das responsabilidades que o Miguel Portas optou pelo segundo caminho. O condicionamento da hipótese desejada pela maioria do Parlamento, sujeitando-a a um mandato do Conselho de Segurança, nada tinha de ingénuo. Com efeito, é público que a China, a Rússia e vários governos europeus preferem, de momento, a prudência à aventura.
Se a nossa preocupação fosse simplesmente ideológica e propagandística, o voto não apresentava dificuldade. Mas se o objectivo fosse, como foi, dificultar a instrumentalização do Parlamento em favor de uma operação de contornos mais do que imprecisos e decidida à margem das Nações Unidas, então a táctica que seguimos foi acertada.
5. Esta decisão impunha, contudo, uma medida adicional obtida nas negociações - garantir uma votação electrónica separada para o parágrafo em questão. Com esta salvaguarda, a esquerda podia deixar bem clara a sua oposição à possibilidade de uma zona de exclusão aérea. Foi o que aconteceu. Ambos votámos contra esse parágrafo, aliás como a grande maioria da bancada. E foi porque o fizemos que pudemos, simultaneamente, dar um voto favorável a uma resolução que condicionava fortemente a possibilidade de uma medida desta natureza.
6. Podíamos ficar por aqui, mas há mais duas ou três coisas que nos ocorre dizer em face da insultuosa campanha que está em curso. A primeira: o bloco não tem, nunca teve, uma posição de princípio contra intervenções de natureza militar sob mandato da ONU. Já as defendemos em situações de genocídio ou espiral de massacres. A segunda: uma das razões porque fomos contra a possibilidade de criação de uma zona de exclusão aérea é porque o parágrafo não esclarecia o que se queria dizer com isso. Com efeito, uma zona de exclusão aérea tradicional, aplicada a toda a Líbia, impõe, devido às dimensões do país, a destruição das posições anti-aéreas no terreno. Contra esta opção seremos sempre. Mas existe outra variante de "exclusão aérea", reivindicada pelo levantamento popular armado e pela Liga Árabe: que a comunidade internacional impeça, por meios militares, qualquer tentativa de bombardeamento das cidades sublevadas pela força aérea do ditador. Se a situação se degradar e Kadafi optar pelo massacre da insurgência e das populações civis, esta possibilidade não deve ser posta de lado. É que há momentos em que o pseudo-pacifismo de quem nunca foi pacifista se confunde perigosamente com a defesa do ditador. Esta atitude não é mais nem menos cínica do que a dos governos europeus que, debitando loas aos Direitos Humanos, apoiaram durante anos a clique de Kadafi. Sinceramente, para peditórios de cinismo é que já demos mesmo.