Entramos na Cova da Piedade e sentimos o peso do passado no presente, com tanta gente ausente, com tantas histórias que talvez nunca sejam contadas, histórias que uniram mas também desencontraram uma terra, um rio, e tanta gente de vulto, que tanto fizeram no associativismo, no cooperativismo, no companheirismo, na luta por melhores dias. Alguns perderam-se para sempre, mas para sempre ficam na memória daqueles que não esquecem que antes de nós já esteve cá muita gente.
Andando pela Cova da Piedade, constata-se o abandono a que são votados certos pontos históricos que deviam ser preservados, sente-se o amargo e o desprezo de quem deixa para amanhã o que talvez não pense fazer nunca. Escrevo sobre a Cova da Piedade mas esse facto não encerra todo um problema transversal ao Concelho de Almada.
Certamente são muitos e muitas, que ao passar no Pombal, conhecida localidade da Cova da Piedade, não repara – porque não existe nada que chame a atenção – para a existência da Fonte medieval do Pombal, lembro a titulo de exemplo os estudantes da Escola Anselmo de Andrade, que passam muito perto deste local.
Podia e devia existir um painel alusivo a este património que resiste ao longo de séculos, e tanta gente passa por ele sem reparar no que ali está, nem na importância que tem para a memória das gentes da Cova da Piedade, e não só.
A água enquanto elemento essencial à vida, esteve sempre presente na geografia da Cova da Piedade. A água que faltava na Vila de Almada, dada a sua posição elevada que tornava impossível atingir os lençóis freáticos, existia nas encostas do Vale da Piedade, nomeadamente na referida Fonte medieval, também conhecida como Chafariz do Pombal, ou até como Mina de Água do Pombal, que desde finais séc. XIV servia para abastecimento público. (Cova da Piedade – Património e História, CAA)
Os apelos para a preservação deste local, evitando que se torne num depósito de lixo, e a colocação de um painel que resuma os aspetos considerados importantes para a sua identificação e que respeite o património histórico, são apenas apelos a que a entidade responsável não tem dado muita importância.
Veja-se o caso da Nora que se encontra nas traseiras do Palácio da Viúva Gomes. É uma peça com história que se encontra ao abandono e a servir como depósito de lixo, até quando não se sabe, fica-se com a ideia que será para sempre, o que é lamentável.
Esta Nora, mandada instalar por António José Gomes, abastecia um depósito elevado de onde era canalizada a água para rega de árvores de fruto, couves e outros produtos hortícolas da quinta. A pequena Nora está perto de uma ruína da antiga garagem do palácio, cuja dgradação é cada vez mais acentuada.
Posteriormente foi erguida uma Nora de maiores dimensões, que pode ser vista facilmente nos dias de hoje, dentro do espaço da Escola Conceição e Silva. Esta estrutura foi classificada como imóvel de interesse concelhio em 1982. Nestes 42 anos que passaram a única coisa que aconteceu foi o aumento da degradação desta peça exemplar de arquitetura do ferro do início do séc. XX, que terá sido adquirida em peças pré-fabricadas e montadas no local, na memória do povo, ficou a ideia de que esta construção se ficou a dever a Eiffel. Como elemento interessante da história, temos que a água captada na quinta abastecia um fontanário existente no largo da Cova da Piedade, onde a população se abastecia para uso diário.
Estas duas Noras, obras de arte em ferro, têm resistido ao tempo que passa, mas não será assim para sempre. Mereciam mais por parte da entidade responsável, que podia e devia, ter iniciativa para preservar estas memórias, impedindo a sua total degradação.
Uma outra grande mágoa é o abandono a que foi votada a Antiga Escola do Gomes , assim designada pelos mais antigos, nos quais me incluo claramente. A Escola Primária António José Gomes, inaugurada em 1911, foi o segundo edifício do concelho de Almada construído com o fim a que se destinava, ser um edifício escolar. A primeira tinha sido a Escola Conde Ferreira, em 1868. Foi construída já depois do seu falecimento, por iniciativa e empenho da sua Viúva, Dª Maria Soares da Rocha Gomes, que concretizou a obra (Cova da Piedade – Património e História CAA).
A escola centenária encontra-se cada vez mais degradada, não se tendo confirmado nenhuma das soluções anunciadas. Durante anos manteve intactas as janelas e vidros, infelizmente essa realidade mudou, e começaram a ser visíveis vidros partidos propositadamente. Atualmente, a autarquia mandou tapar as janelas com contraplacado, ficando aquele imóvel centenário completamente desfigurado.
Que triste sina para a memória e a preservação do património histórico da Cova da Piedade.
Entramos na Cova da Piedade e logo na entrada vemos a Sede da SFUAP, como não gostaríamos de ver. Recentemente foi demolido o Teatro Garret, do qual apenas se manteve a fachada, que é a recordação de tantos momentos agradáveis e inesquecíveis, como o filme que marcou a juventude dos anos sessenta “O ódio que gerou o amor , com Sidney Poiter, ou “Adivinha quem vem jantar”, com o mesmo grande actor.
Inesquecível também, foi a apoio que a SFUAP deu à luta operária dos trabalhadores do Arsenal do Alfeite. Quando no princípio dos anos 80 foram proibidos os plenários de trabalhadores no interior do Estaleiro, foi possível reunir em plenário nas instalações do Teatro Garrett, um apoio importante num momento difícil da luta operária.
E o rio inacessível ao povo, emparedado entre os altos muros da Base do Alfeite e os terrenos do Estaleiro da Lisnave desactivado, eternamente à espera, não sabemos bem de quê.
A pequena porção de terra que ainda dá acesso ao rio, na Margueira, está em condições de abandono, não oferecendo o mínimo de condições aos pescadores que ainda resistem, e é com lamento que se verificam despejos de entulho e outros lixos.
Existe um apelo por parte de muitas pessoas, para ver respeitada a memória da sua terra ou da terra que escolheram para viver, desejo que este pequeno texto possa ser um contributo para alertar nesse sentido.
Não podemos ir em frente sem olhar para trás.
Artigo publicado em Almada online a 30 de agosto de 2024