Nas praias da Turquia encontrámos a mais cruel face da fuga que tantos encetamos das mais diversas maneiras. Encurralado nas paredes de um mundo que escorraça os vulneráveis que cria, jaz uma alma inocente, vítima das engenharias políticas que manufaturam apenas vidas de desespero.
Mais do que demasiado jovem para deixar a vida neste mundo, é demasiado jovem para ter visto a fome, a violência, o desespero e o sofrimento dos quais foge.
Demasiado jovem para lhe ser negado o direito a viver, para ser uma vítima colateral das guerras nascidas nos corredores do poder desse mundo fora, para ser moeda de troca nas negociatas e caprichos dos que se apropriam das nossas vidas fazendo deles o mundo de todos.
O sorriso que perece é a esperança da humanidade que desvanece. A história pouco nos ensina e repetimos os erros que rotulamos de atrozes à distância do tempo mas que insistimos em reproduzir ou permitir; recuperamos os vagões empilhados de corpos como que despidos de vida humana, marcamos a pele com os selos da ostracização esvaziando de dignidade um ser humano, esquecemos os nomes para apenas lhes chamarmos refugiados, como um dia a muitos chamavam apenas de judeus.
Refugiados existem apenas porque criamos fronteiras, demarcando com linhas imaginárias, tingidas de sangue e ganância, um mundo que é de todos nós. Refugiados é somente mais um rótulo tal como a raça, a cor, a religião, a nacionalidade, o sexo e tantas outras características para que possamos compartimentar os problemas, vendo-os como de alguns em especifico e não de todos.
A Guerra não é dos sírios, tal como o racismo não é dos negros, como o extermínio não era dos judeus: é de todos nós, os que perpetram, os que sofrem, e os que pactuam, observando inertes e coniventes. Compadecemo-nos de tempos a tempos, quando a evidência é demasiado flagrante.
Choramos a criança vítima de uma humanidade desprovida de si própria, fingindo ignorar os conflitos que se multiplicam produzindo milhares de novas potenciais vítimas. Aquela praia poderia ser um qualquer vão de escada de um edifício destruído, um qualquer canto recôndito onde alguém sucumbe à fome ou à doença. Compadecemo-nos daquilo que veem os olhos, quando mesmo fechando-os a verdade abre-os abruptamente. Ignoramos que as bombas que observamos à distância sentados no sofá, destroem vidas, que lutam até ao âmago das suas forças por uma nesga de esperança num mundo que insiste em tudo lhes roubar.
Opinamos desconhecendo a crueldade da incerteza de viver o dia seguinte, sem saber o medo de cada minuto trazer consigo a possível perda dos que amamos.
Esquecemos que também nós somos refugiados da outras guerras. Emigramos para fugir de um país devastado pela austeridade, um país assaltado na sua dignidade e direitos: não somos menos refugiados porque partimos com um bilhete de avião ao invés de num frágil barco de borracha. Somos refugiados de um mundo laboral implacável que não faz prisioneiros, consumindo qualquer perspetiva de reconhecimento ou estabilidade. As filas não são junto dos arames farpados ou para garantir lugar num comboio, mas sim junto aos Centros de Emprego em busca da mais ínfima esmola ou réstia de esperança.
Somos refugiados, perseguidos por uma casta de políticos que despindo-nos de todos os nossos direitos, e vendido a nossa dignidade, não desistem de exigir que lhes devolvamos o mais ténue lampejo de esperança.
Multiplicam-se as vozes de acolhimento a emigrantes, mas a humanidade tornou-se insignificante, substituída pela matemática. Não interessam os que vacilam no limite do desespero, interessa sim se se inserem na quota de refugiados, nos números aceitáveis, afinal é a regra e esquadro que ditam as fronteiras, também o serão a ditar quem pode ser “salvo” ou não.
Despejados do nosso mundo, somos arrendatários desrespeitados por senhorios gananciosos. Num mundo sem fronteiras não haveriam refugiados, tal como num mundo sem tiranos e interesseiros não haveriam guerras intermináveis. Gerados refugiamos, mas como tudo o que é nefasto fingimos ignorar até que a bofetada da evidência se torne por demais sentida.