Que país é este que não acorda após a investigação de Maria José Oliveira sobre as torturas, as mortes, os assassinatos de tantos e tantos moçambicanos às mãos da PIDE? Que país é este que não desperta, não chora, não vomita ao saber do extermínio por inanição (dias e dias sem comer e beber, em celas sobrelotadas, sem luz) das pessoas capturadas e submetidas ao sadismo programado dos seus algozes? Que país consente, pelo silêncio, este passado insuportável: i-n-s-u-p-o-r-t-á-v-e-l?
Cães atiçados às carnes dos colonizados, para lhes arrancarem o “bife”, pedaços da cara, dos braços, das pernas, dos sexos? Polícias que abatiam jovens deficientes que, por infortúnio, lhes pediam boleia? País que usava o trabalho dos presos como escravatura nas casas e terras dos carrascos, ou na construção de obras públicas (cinco, cinco cigarros, com sorte, eis o pagamento, porrada até à morte, se refilares), que país é este?
Quem sabia dos convés da morte, para onde eram atirados, da altura de dez metros, os escravos do século XX, deitados ao mar se morriam na viagem ou na decorrência dos traumatismos? Onde está a brandura, o colonialismo português suave de quem mandava os já condenados cavarem a sepultura onde iam, em seguida, ser engolidos pela terra?
Que país é este, que silêncio vil prossegue com o esquecimento, o doce olvido, perante uma estrutura de morte que englobava, na sórdida cumplicidade, o ditador, os ministros, as chefias, médicos e enfermeiros, pessoas anónimas que sabiam, consentiam, aplaudiam e calavam? Desde o gabinete e o carimbo, passando pela certificação do óbito com causas falsas, até às mãos que assassinavam, com cavalos-marinhos, chicotes, choques elétricos, gasolina – e tantos, tantos outros dispositivos, que a imaginação do horror engendra?
E porque não soubemos nós punir, denunciar, expor ao mundo, depois da revolução, a ignomínia praticada? Não há condenados, não há opróbrio para quem sabia, mandou, torturou – uma engrenagem de mãos sujas, não importa o estatuto de cada peça. Que continuidade existe entre este país do mal e as hordas que, hoje, insultam e perseguem imigrantes, os desumanizam como entes inferiores e objetos de ódio? Quando aconteceu tudo isto?
Depois das reportagens da Maria José Oliveira só as perguntas são possíveis, para inquietar os vivos e honrar a memória dos mortos.
Artigo publicado no jornal Público a 5 de agosto de 2025
