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Que mudança, Dr. António Costa?

O recente encontro de António Costa com Manuel Valls foi um momento repleto de simbolismo, por várias razões.

"Como se tem visto, não é possível construir soluções nacionais de forma unilateral, nem em conflito com a Europa e com as instituições europeias" António Costa.

O recente encontro de António Costa com Manuel Valls foi um momento repleto de simbolismo, por várias razões. Desde logo, pelo interlocutor em causa. Manuel Valls é o primeiro-ministro de Hollande, provavelmente o melhor representante da deriva da social-democracia europeia, mas seria injusto avaliá-lo pelos méritos alheios. Valls distinguiu-se por conta própria ao implementar um violento programa de austeridade por decreto, esquivando-se a um chumbo anunciado no parlamento, do qual retirou a proposta in extremis, num momento tão caricato quanto degradante. Antes disso exigiu e conseguiu uma remodelação governamental que enxotou os ministros à esquerda do seu governo, em coerência com a sua proposta antiga de retirar a palavra socialista do nome do seu partido. Talvez por isso que António Costa tenha sentido a necessidade de dizer nesse encontro “Somos amigos e socialistas”.

Mas a frase citada em epígrafe é de longe a mais significativa desse encontro. António Costa tem sido parco em propostas para uma alternativa e ainda mais em compromissos. Esta frase ajuda a compreender toda essa discrição mas, mais importante, permite desvendar a agenda de que Costa fala tão pouco.

O “como se tem visto” é uma alusão transparente à situação na Grécia. António Costa começa desde logo por considerar que é o governo grego que quer construir soluções de forma unilateral e em conflito com a Europa e as instituições europeias, não vá alguém não perceber de que lado Costa se posiciona. No entanto, o governo grego, em nome de uma solução de compromisso, já cedeu numa parte significativa do seu programa, gerando inclusive um descontentamento crescente no principal partido que o apoia. Na realidade, a intransigência, as ameaças, as chantagens tem vindo, sim, do outro lado da mesa das negociações. António Costa parece estar desatento ao conteúdo das negociações, mas também ao processo.

Em primeiro lugar, o que “se tem visto” é que, se a “Europa” é um continente e continua no mesmo sítio, as “instituições europeias” são coisa cada vez menos relevante. Neste processo, a Comissão Europeia foi olimpicamente ignorada, quando não abertamente desautorizada, como aconteceu na reunião do Eurogrupo de 16 de Fevereiro. O presidente da Comissão Europeia foi remetido para declarações públicas à margem das negociações, enquanto a Alemanha assumia abertamente a condução do processo, chegando a coisa ao ponto de se interromper o eurogrupo para que se realizasse um “mano-a-mano” entre Schäuble e Varoufakis. Do Parlamento Europeu, único órgão eleito pelos cidadãos europeus, é melhor nem falar.

Já há algum tempo que o método comunitário se parece cada vez mais com um biombo, útil apenas para ocultar o exercício do poder direto da Alemanha sobre todos os assuntos da União. A novidade no processo da Grécia é que já nem a Alemanha se dá ao trabalho, nem as instituições conseguem disfarçar.

Em segundo lugar, o conflito existente entre o governo grego e o governo alemão tem um conteúdo concreto: as medidas que o governo grego deve ou não implementar. É aqui que reside a divergência. Por isso, o que António Costa diz quando afirma que nenhuma solução nacional pode ser construída em conflito com as instituições europeias é que o seu governo não aplicará medidas que não sejam aceites pela Alemanha nem deixará de aplicar as medidas que a Alemanha exigir.

A Alemanha exigiu e conseguiu o desaparecimento de muitas medidas que visavam mitigar a crise humanitária que se vive na Grécia, medidas essas que ficariam aquém mesmo de um programa mínimo da social-democracia. Mas mesmo essas concessões foram insuficientes. A Alemanha exige agora que o governo cumpra as promessas da direita grega, no sentido de cortar pensões, liberalizar o mercado de trabalho, aumentar o IVA e privatizar energia e aeroportos. Ou seja, a Alemanha quer governar a Grécia contra os resultados das eleições, ponto final. E o governo grego não quer. É esse o “conflito”.

Assim sendo, a questão que coloco é simples: como planeia o Dr. António Costa implementar a mudança que vem prometendo aos portugueses? Se regra for a de que qualquer conflito com a Alemanha está proibido, então estamos mal. Estamos mal porque, “como se tem visto”, o governo alemão ou as instituições europeias ou o eurogrupo não atribuem qualquer relevância aos resultados eleitorais e aos desejos de mudança que estes possam exprimir. Por isso, um Primeiro-Ministro que exclua qualquer possibilidade de conflito com a “Europa”, não será um Primeiro-Ministro. Será um encarregado e cumprirá a agenda que se decidir em Berlim, que é a que "temos visto". Se isso não é um problema para o Dr. António Costa, fica-se a perceber melhor que considere Manuel Valls um “socialista” e um “amigo”. Temo, aliás, que seja o princípio de uma bela amizade.

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputado e economista.
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