1. Ultimamente, a direita tem conseguido uma coisa notável: combinar o discurso da cidade perfeita com o discurso da cidade à beira do colapso. Moreira e Moedas, que fizeram carreira na promoção da “cidade europeia segura e atrativa”, foram os primeiros a alimentar esse desvio. Parece contraditório, mas é engenhoso. Primeiro, apresenta-se uma cidade segura, remodelada, sem pobreza visível: o postal turístico para inglês ver. Depois, espalha-se a sombra do perigo em cima desse postal, para justificar internamente o estado de exceção: “atenção, a cidade não está assim tão segura”. Uma cidade-montra para os investidores externos, uma cidade-ameaça para quem cá vive.
2. No debate securitário, temos, enquanto esquerda, ficado um pouco bloqueados entre o negacionismo e a fuga. Para o que diz respeito a este debate, é insuficiente afirmar que a verdadeira insegurança está na precariedade laboral ou na ameaça de despejo (por muito que também esteja). Desconversar não resolve nenhuma conversa. Também é insuficiente combater percepções apenas com dados estatísticos, porque as percepções importam e é muito sobre elas que a política tem assentado. Se pretendemos ultrapassar este debate, temos de o encarar de frente, e disputar o conceito de segurança. Recusar que segurança tenha de ser sinónimo de vigilância, e abrir espaço a novas hipóteses: e se os processos de gentrificação forem os responsáveis pela percepção de insegurança nas cidades, precisamente porque destroem laços, proximidade, pertença e vida coletiva?
3. A luta contra estes processos de destruição não passa apenas pelo direito à habitação, mas também pelo direito à cidade. Lefebvre lembrava que o direito à cidade não é apenas o direito de aceder ao espaço público, mas o direito de participar na construção desse mesmo espaço. Esse direito, que nunca esteve assegurado, foi definitivamente arrasado na última década quando tudo – incluindo a vida social – passou a ser definido em função dos investidores. A gentrificação é um processo político completo que passa por retirar todo um território às comunidades para o transformar em ativo financeiro. E depois fazer com que essas mesmas comunidades acreditem que lhes foi feito um favor.
Os adeptos da gentrificação no Porto, por exemplo, usam frequentemente o argumento de que, há vinte anos, a cidade era perigosa, suja, quase infrequentável. É verdade que houve várias melhorias no espaço público desde essa altura, mas não tinham de ocorrer a custo da vida das pessoas e da vida da própria cidade. O resultado da cidade-marca para consumo desenfreado é o que se sabe: zonas inteiras esvaziadas para airbnb, feitas praças da alimentação a céu aberto, comércio tradicional substituído por cafés gourmet e “concept stores”.
Moreira e Moedas não detestam imigrantes, detestam pobres
(O que incomoda Rui Moreira não são as concept stores, são as lojas de souvenirs e os negócios de quem menos tem. O autarca, que sempre recusou qualquer competência para regular alojamento local e que nunca teve nada contra vistos gold, pede agora mais poderes ao Governo para regular as lojas de souvenirs que, não tem a “mínima dúvida”, servem para “negócios paralelos”. Moreira e Moedas não detestam imigrantes, detestam pobres.)
4. Parece um paradoxo mas não é: quanto mais se higienizou certas zonas para o turismo, mais se transformaram em espaços sem vida local e, por isso, mais vulneráveis. A chamada “revitalização” deu azo a lugares monoculturais – não há espaço para a diversidade e a partilha, só para o consumo individualista. A segurança deixou de ser uma construção quotidiana, orgânica, para passar a depender de uma vigilância autoritária e abstrata, sempre à espera de intervir. A ausência de vida real transforma as ruas num não-lugar: ninguém sente responsabilidade sobre o que ali acontece, e qualquer imprevisto parece mais ameaçador por não haver redes de apoio e solidariedade. Câmaras de vigilância não podem substituir uma rua habitada onde circula cuidado, apoio mútuo, vizinhos, idosos que espreitam das janelas. Uma cidade sem vizinhança é uma cidade desprotegida.
5. O debate sobre segurança nas cidades costuma estar ainda refém de um falso dilema: ou há mais polícia, ou deixamos o espaço público a degradar-se. Mas a resposta da esquerda não pode passar por posições ingénuas contra a presença da polícia. São úteis modelos de polícia comunitária e de proximidade, integradas numa rede mais ampla de serviços sociais, mediadores culturais, centros de juventude e associações. A verdadeira questão não é a quantidade de polícias nas ruas — é a forma como se constrói essas relações: se é feita com as pessoas ou contra elas.
6. Com cidades cada vez mais descaracterizadas, irreconhecíveis e parecidas com qualquer capital europeia, existe o sentimento de invasão. A conclusão mais fácil parece ser a de que a culpa é da imigração, do outro que me rouba a casa e o trabalho, que me despe dos meus hábitos e forma de vida, que se dedica à criminalidade. Não é relevante se isso tem alguma correspondência com a realidade. Em vez de promover a integração de quem para cá vem viver e trabalhar, interessa ao poder alimentar a desconfiança sobre essas pessoas para que a sua própria responsabilidade seja transferida. E com isso se gera mais insegurança porque mais ódio, perseguição, conflito.
Responder a isto exige mais do que indignação. É preciso estarmos disponíveis para este debate sem fazer cedências à direita. A segurança que interessa à esquerda é a que nasce do enraizamento, da estabilidade, do reconhecimento. É urgente travar a especulação imobiliária com limites às rendas e proibição dos despejos, proteger o comércio local, integrar imigrantes com dignidade (tragam ou não investimentos milionários), mas também investir no espaço público como lugar de vivência social além do consumo, criar cidades onde o ódio não impere, onde não haja espaço a linchamentos, onde as mulheres possam caminhar sem assédio, onde as crianças tenham liberdade para brincar na rua, onde pessoas em situação de vulnerabilidade sejam protegidas, onde não se imponha barreiras invisíveis. Tudo isto é possível. Contra o populismo odioso que coloca alvos nos mais frágeis, é possível procurar uma ideia de segurança que combata a suspeição com comunidade.
Artigo publicado originalmente em Anticapitalista #82 – Setembro 2025