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A ponta do iceberg

Praticar um desporto em segurança não deveria ser um privilégio a que alguns têm acesso segundo o seu género. A história ensinou-nos que se há algo que as mulheres sempre souberam fazer foi resistir, não será diferente no futebol.

Nos últimos tempos, várias denúncias de assédio e abuso sexual têm vindo à tona no futebol feminino. Esta semana foi em Portugal que se tomou conhecimento de denúncias por parte de jogadoras do Rio Ave, denúncias essas que acusam o seu ex-treinador, Miguel Costa, de assédio sexual. Que se engane quem achar que este é um ato isolado no futebol feminino. Desde alguns anos para cá, as denúncias de assédio sexual, abuso sexual e abuso psicológico têm aumentado no futebol feminino e, se por um lado é positivo que as jogadoras comecem a ter coragem para denunciar, por outro sabemos que estas denúncias são só a ponta do iceberg.

Em 2018, o presidente da Federação de Futebol do Afeganistão, Keramuudin Karim, foi banido pela FIFA de praticar qualquer atividade relacionada com futebol após ser acusado de abuso sexual e físico por parte das atletas afegãs. Num dos relatos feito por uma das jogadoras abusadas por Keramuundin, após lhe pedir ajuda monetária para pagar os transportes para voltar para casa, esta foi levada para um quarto isolado onde foi abusada sexualmente pelo mesmo que disse, e citando o relato da jogadora: “Ele disse-me que hoje ia descobrir se eu era lésbica ou não, porque eu passava muito tempo com as raparigas e parecia um rapaz.”

Outro caso semelhante foi o da denúncia contra o treinador do North Carolina Courage da liga feminina dos Estados Unidos, Paul Riley, que no ano passado foi acusado de coagir atletas a terem relações sexuais com ele. A partir dessas denúncias surgiu todo um movimento na liga americana contra o abuso e assédio sexual praticado contra as atletas, levando todas as equipas a pararem de jogar ao sexto minuto e a juntarem-se no meio-campo em silêncio. A escolha da hora do jogo para demonstrarem a solidariedade com as suas colegas de profissão tem um motivo: levou 6 anos até que Mana Shim e Sinead Farrelly conseguissem fazer as denúncias que acabariam por levar com que Paul Riley fosse demitido e alvo de investigações pela Federação Americana e pela FIFA.

A partir deste movimento que nasce na liga americana, as jogadoras da seleção venezuelana decidem denunciar através de uma carta assinada por 24 atletas, os abusos que sofreram por parte do ex-treinador Kenneth Zseremeta. Nessa carta dizem ter sido vítimas de abuso sexual e psicológico. É ainda revelado, por parte de uma jogadora não identificada, que era vítima de abusos sexuais por parte de Kenneth desde os seus 14 anos, quando iniciou o seu percurso na seleção nas camadas jovens. A juntar a tudo isto, as jogadoras dizem que aquelas que pertencem à comunidade LGBTQ+ eram constantemente questionadas sobre a sua orientação sexual. Eram ainda ameaçadas que contariam aos seus familiares sobre a sua orientação sexual caso não obedecessem ao treinador ou não tivessem a performance esperada.

Estes são apenas alguns exemplos entre dezenas que foram denunciados nos últimos anos. Segundo os dados da organização Women in Football, houve um grande crescimento de denúncias de comportamento sexista no futebol, que inclui denúncias contra clubes, organizações e online, chegando a um aumento de quase 400% na época de 2017-2018.

Se é verdade que por um lado o aumento das denúncias se deve ao facto das atletas serem cada vez mais incentivadas a denunciar estes abusos, também é verdade que houve de facto um crescimento de abusos para com as jogadoras neste desporto. O crescimento deste comportamento pode ser explicado pelo facto de o futebol feminino ter tido um avanço enorme e mais exposição. Como em todo o lado neste sistema patriarcal, assim que as mulheres conquistam mais espaço e têm mais sucesso num lugar que é tradicionalmente dominado por homens, há um aumento deste tipo de comportamentos. É uma tentativa de mostrar às mulheres que não admitem que o seu poder seja posto em causa e uma tentativa de manutenção do seu privilégio.

Segundo um estudo da Universidade de Durham, os homens continuam a dominar as posições com maior relevância e poder no futebol e, quando as mulheres têm algum cargo com maior relevância, por norma são cargos mais secundários. Desta forma, ao excluírem as mulheres dos lugares de decisão no futebol, estão a garantir a manutenção do domínio masculino neste desporto e a proteção dos seus interesses.

O futebol e os seus adeptos acabam por ser um espelho da sociedade. Se a nossa sociedade é estruturalmente machista, o que podemos esperar é que esse comportamento seja levado para as estruturas do futebol. Haverá forma de revolucionar o futebol para que seja um lugar seguro para toda a gente? Certamente.

Apesar dos relatos infelizes de todo o abuso que as mulheres e pessoas da comunidade LGBTQ+ sofrem no futebol, parece que começa a haver espaço nos meios de comunicação que ajudam a denunciar estes casos e oferecer às vítimas um lugar em que a sua voz e as suas denúncias tenham impacto. É também necessário que exista um compromisso coletivo entre adeptos, clubes, treinadores e jogadoras para que haja uma tolerância zero para com este tipo de comportamentos, sabendo que só assim é que conseguiremos construir um espaço seguro para que as mulheres consigam desfrutar do futebol em segurança.

Em 1921, a federação inglesa proibiu que as mulheres praticassem futebol, proibição essa que durou 51 anos. No Brasil não foi diferente e em 1941, uns bons anos mais tarde que a primeira proibição na Inglaterra, as mulheres também viriam a ser proibidas de praticar futebol, proibição essa que durou até ao ano de 1979. Durante anos a fio, houve uma tentativa de afastar as mulheres do futebol, de lhes tirar essa alegria de praticarem o desporto que amam e de afirmar que o futebol era um desporto para homens. Estes casos de abuso e assédio que têm sido denunciados, para além de todo o dano que causam às vítimas, fazem-nas desistir e perder o encanto por algo que amam. Praticar um desporto em segurança não deveria ser um privilégio a que alguns têm acesso segundo o seu género.

A história ensinou-nos que se há algo que as mulheres sempre souberam fazer foi resistir, não será diferente no futebol.

Sobre o/a autor(a)

Mestranda em Comunicação Política na Faculdade de Letras do Porto, ativista feminista e dirigente do Bloco de Esquerda.
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