Pingo doce, futuro amargo

porRicardo Coelho

02 de maio 2012 - 14:12
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No Porto, o Mayday invadiu o Pingo Doce, não para fazer compras, não para atacar quem fazia compras, mas para protestar contra as práticas anti-sociais da empresa e para expressar solidariedade com quem lá trabalha.

Do Pingo Doce já sabemos o que esperar. O grupo Jerónimo Martins representa o pior do capitalismo português, com as suas manobras para espremer os custos do trabalho, fugir aos impostos e substituir a justiça social pela caridade. Consegue fazer tudo isto de forma exímia porque se apoia em duas grandes máquinas: uma de publicidade e uma de propaganda. Duas máquinas que estiveram bem oleadas no 1º de Maio, tentando calar a nossa voz de protesto.

A máquina de publicidade vende-nos a ideia de que no Pingo Doce se encontram os preços baixos, os melhores produtos e o melhor atendimento todo o ano. Mostra-nos trabalhadoras sorridentes, desejosas de servir quem aparece no supermercado, depois de uma longa e mal paga jornada de trabalho. Mostra-nos agricultores sorridentes, ansiosos para venderem os seus produtos no supermercado com uma margem de lucro miserável, ao abrigo de contratos extorsionários. Mostra-nos clientes sorridentes, enchendo os carrinhos de compras, suficientemente felizes com os descontos que obtiveram aqui e ali para não pensarem que estes descontos são deduzidos no salário de gente como eles.

A máquina de propaganda, mais ambiciosamente, vende-nos a ideia de que não há alternativa à selvajaria neoliberal, ao empobrecimento coletivo, à exploração generalizada e ao aumento contínuo das desigualdades. O braço político do grupo Jerónimo Martins, a Fundação Manuel dos Santos, divulga estatísticas gratuitamente, lança comentadores e publica livros. Através da sua base de dados estatística, podemos ver em tempo real os assustadores contadores que nos mostram quanto dinheiro foi gasto hoje em educação e saúde1, mas não podemos saber qual a parte da dívida pública atribuível às benesses dadas aos grupos empresariais. Através do seu presidente, António Barreto, podemos ouvir discursos sapientes, como o que nos diz que a coesão social está ameaçada porque o governo e as empresas não nos sabem explicar devidamente a necessidade de fazermos sacrifícios2, sem explicar que esses sacrifícios se destinam a encher os bolsos de quem o salário ao sociólogo do regime. Através dos seus livros, vendidos a baixo preço no Pingo Doce, recebemos todo um curso de ideologia neoliberal explicado ao povo e às crianças.

As duas máquinas têm sido usadas pelo Pingo Doce para tentar minar o 1º de Maio, enquanto manifestação popular da classe trabalhadora pelos seus direitos. No ano passado, a cadeia de supermercados abriu os cordões à bolsa para pagar o dia a triplicar e dar um dia de folga aos seus trabalhadores, ao mesmo tempo que nos aliciava a ir lá fazer compras. Neste ano, foram bem mais longe e decidiram oferecer um desconto de 50% a quem fizesse compras no valor mínimo de 100 euros.

A campanha foi extremamente eficaz, de tal forma que os supermercados ficaram com as prateleiras vazias, houve gente a esperar horas para conseguir pagar e foi mesmo necessária a intervenção da polícia em alguns supermercados. Numa cena própria de um filme de terror, daqueles em que as pessoas entram em pânico porque o fim do mundo está próximo, as pessoas acotovelavam-se para conseguir comprar as suas mercearias ou simplesmente para meter ao bolso o que conseguiam, aproveitando a confusão. Nos corredores dos supermercados, amontoava-se lixo, à medida que mercadorias iam sendo destruídas pela multidão em fúria. Famílias juntavam-se para fazer piqueniques enquanto não conseguiam sair, servindo-se do que encontravam nas prateleiras. Em Sintra, o IC19 teve de ser fechado ao trânsito temporariamente, dado o trânsito infernal em torno do centro comercial Fórum Sintra.

Não é difícil entender porque foi tão eficaz esta campanha. Recusar um desconto de 50% em compras num momento como o que atravessamos não é um luxo a que muita gente se possa dar. É certo que não é muito dinheiro, tendo em conta que as pessoas tiveram de prescindir da sua dignidade para andarem a chafurdar no lixo. É certo que é pouco, muito pouco, para prescindir do 1º de Maio e, por arrastamento, dos direitos que ainda temos enquanto trabalhadores e trabalhadoras. Mas esta é a realidade da pobreza: nos países pobres tudo é barato, incluindo a dignidade e a própria vida. O sucesso desta campanha é reflexo do sucesso das políticas de austeridade na promoção do empobrecimento coletivo.

No Porto, o Mayday invadiu o Pingo Doce3, não para fazer compras, não para atacar quem fazia compras, mas para protestar contra as práticas anti-sociais da empresa e para expressar solidariedade com quem lá trabalha. Fizemo-lo porque sabemos que apenas na união contra a exploração está a força necessária para vencer a política da crise e porque valorizamos a rebeldia e a desobediência como formas de expressar a nossa legítima indignação com um sistema capitalista que nos oprime diariamente. Por isso gritamos “preços pela metade, direitos pela metade” e “Pingo Doce, salário amargo”, por isso continuaremos a resistir ao polvo que é o grupo Jerónimo Martins - porque as nossas vidas não estão à venda e da nossa resistência depende o nosso futuro.


Ricardo Coelho
Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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