Pelo fim das ‘cidadanias truncadas’, atualizem-se as leis eleitorais!

porEduardo Figueiredo

20 de setembro 2023 - 12:33
PARTILHAR

Está na hora de se reconhecer as pessoas com deficiência (desde logo, mental e intelectual) como cidadãos de pleno direito e não meros detentores de uma qualquer ‘cidadania truncada’... Trata-se de uma exigência do mais elementar humanismo e dos mais básicos imperativos de justiça.

Ao longo da História, a pessoa com deficiência tem visto os seus direitos e liberdades sistematicamente restringidas, suspensas ou mesmo denegadas, apresentando-se como o rosto da exclusão em sociedades que, em maior ou menor medida, sempre promoveram o culto do corpo e da sua “harmonia estética”, a qual tende a ser avaliada a partir de critérios de ‘normalidade’ e ‘funcionalidade’. Na verdade, a crua experiência de opressão política, económica, social e cultural em que se traduz a deficiência – a qual deve, portanto, ser entendida longe de todo o tipo de conceções místicas, religiosas, caritativas, assistencialistas, médicas ou mesmo reabilitadoras – não só revela um profundo mal-estar individual e coletivo com a fragilidade intrínseca do corpo humano, como também comprova a irracional e feroz aversão à diferença corpórea que (ainda) carateriza a hipermodernidade. O resultado é, como bem se sabe, a rotulação e estratificação dos corpos – o ‘corpo normal e funcional’ vs. o ‘corpo anormal e disfuncional’ – e a emergência de estruturas e relações de dominação que subjugam as pessoas com deficiência. É urgente, portanto, que se contrariem as hodiernas perceções hegemónicas em torno da deficiência e da pessoa com deficiência, assim prevenindo e combatendo os seus efeitos e consequências perversas.

É urgente que se contrariem as hodiernas perceções hegemónicas em torno da deficiência e da pessoa com deficiência

Ora, um dos domínios onde este tipo de perceções prolifera com particular intensidade é o da deficiência mental e intelectual. Incompreensões, medos e preconceitos foram responsáveis pela flagelação, tortura, exorcismo, morte na fogueira ou encarceramento por tempo indefinido em hospitais, casas de correção e asilos de milhares (senão mesmo, sem exagerar, milhões) de pessoas com deficiência mental ou intelectual ao longo dos tempos. A sua qualificação como “seres irracionais”, “não autónomos” e “desprovidos de livre-arbítrio” chegou mesmo a recusar-lhes o estatuto de ‘pessoa’ (e, assim, a negar-lhes a sua dignidade ou o seu “direito a ter direitos”) e a exclui-las do próprio contrato social. E note-se, o sistema jurídico tem contribuído para institucionalizar e até legitimar estas ‘perceções’, por exemplo, viabilizando a existência de pessoas com ‘cidadanias truncadas’, isto é, cujos direitos e liberdades se encontram numa espécie de estado vegetativo persistente.

uma das questões que mais me tem preocupado prende-se com a discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência mental e intelectual em matéria de sufrágio

Perante este cenário desolador, tem sido por via da luta e da resistência, individual e coletiva, que tais perceções acerca da deficiência e da pessoa com deficiência vêm sendo contrariadas. Muitos passos já foram dados nesse sentido, embora o caminho ainda seja longo e bastante árduo. Neste contexto, uma das questões que mais me tem preocupado prende-se com a discriminação sofrida pelas pessoas com deficiência mental e intelectual em matéria de sufrágio. Na verdade, as nossas leis eleitorais (relativas às eleições para a Presidência da República, a Assembleia da República, as Assembleias Legislativas Regionais, as Autarquias Locais e o Parlamento Europeu), bem como as relativas a referendos, dispõem que não gozam de capacidade eleitoral ativa (e, em consequência, também de capacidade eleitoral passiva) “os que notoriamente apresentem limitação ou alteração grave das funções mentais, ainda que não sujeitos a acompanhamento, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta de dois médicos”1. Mais se estabelece que “se a mesa entender que o eleitor revela incapacidade psíquica notória, pode exigir, para que vote, a apresentação de documento comprovativo da sua capacidade, emitido pelo médico que exerça poderes de autoridade sanitária na área do município e autenticado com o selo do respetivo serviço”.

a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência estabelece que as pessoas com deficiência têm direito ao reconhecimento da sua capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da sua vida

Ora, tais soluções são claramente incompatíveis com o modelo social de deficiência e com o paradigma de direitos humanos que lhe subjaz. Note-se que a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), diploma devidamente assinado e ratificado pelo Estado Português, estabelece que as pessoas com deficiência têm direito ao reconhecimento da sua capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da sua vida (art. 12.º, n.º 2). Assim se afirmou o “paradigma da capacidade jurídica universal”, o qual impede que a capacidade jurídica de uma pessoa possa ser limitada, formal ou informalmente, com fundamento na deficiência, real ou aparente. Além disso, só a capacidade se deve presumir e não já a incapacidade. Por outro lado, a Convenção também obriga o Estado a proteger o direito das pessoas com deficiência a votar, assegurando a sua possibilidade de participar, de forma efetiva e plena, na vida política e pública (art. 29.º). Levando-se a sério o conteúdo destes dois preceitos, facilmente se compreende o porquê de aquelas disposições legais se revelarem problemáticas. Aliás, o próprio Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiência, órgão encarregado de supervisionar o cumprimento das obrigações estabelecidas pela CDPD, já o frisou, manifestando forte preocupação pelo facto de existirem em Portugal pessoas com deficiência arbitrariamente privadas de exercer o seu direito de voto, nomeadamente aquelas que se encontram internadas em estabelecimento psiquiátrico. Igualmente incompreensível, sublinha o Comité, é que uma pessoa possa ser obrigada a apresentar um comprovativo da sua capacidade para votar, sempre que o responsável pela mesa de voto entenda que a mesma revela “incapacidade psíquica notória” (CRPD/C/PRT/CO/1). Não restam dúvidas que o perverso preconceito das “incapacidades presumidas” (desde logo, com base na deficiência) não só se faz sentir no mundo-da-vida, mas também permeia e contamina a própria lei e o Direito. A revogação das normas supramencionadas torna-se, portanto, um imperativo, não apenas para expurgar a nossa lei eleitoral e referendária de todos o tipo de soluções discriminatórias infundadas, mas também a fim de assegurar que Portugal cumpre com todas as obrigações que assumiu internacionalmente nesta matéria.

Não restam dúvidas que o perverso preconceito das “incapacidades presumidas” (desde logo, com base na deficiência) não só se faz sentir no mundo-da-vida, mas também permeia e contamina a própria lei e o Direito

Igualmente problemático – diremos mesmo: inexplicável! – é que a Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores e a Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira continuem a estabelecer que não gozam de capacidade eleitoral ativa “os interditos por sentença com trânsito em julgado”. Como se sabe, os institutos da interdição e da inabilitação foram eliminados do nosso ordenamento jurídico já no ano de 2018 (com a entrada em vigor do Regime Jurídico do Maior Acompanhado – Lei n.º 48/2018, de 14 de agosto), pelo que se impõe, igualmente, a imediata revogação dos referidos preceitos legais.

Por fim, importa não esquecer que, em prol dos avanços encetados pela CDPD, ao Estado não incumbe apenas respeitar e proteger os direitos das pessoas com deficiência, mas também adotar medidas (positivas) aptas a promovê-los. Impõe-se, nessa senda, a eliminação de todas as barreiras que possam impedir ou condicionar o exercício efetivo do direito de sufrágio destas pessoas. Tal passa, por exemplo, por garantir a acessibilidade física aos locais de voto, disponibilizar o voto em Braille, admitir a possibilidade de uma pessoa se fazer acompanhar de alguém da sua confiança quando tal se revele necessário, bem como utilizar sinalética adequada para as mesas de voto.

Está na hora de se reconhecer as pessoas com deficiência (desde logo, mental e intelectual) como cidadãos de pleno direito e não meros detentores de uma qualquer ‘cidadania truncada’... Trata-se de uma exigência do mais elementar humanismo e dos mais básicos imperativos de justiça. Afinal, como afirmava Simone de Beauvoir, “querer ser livre é também querer livres os outros”.


Notas:

1 A Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores e a Lei Eleitoral da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira usam uma formulação ainda mais problemática, determinando a incapacidade eleitoral ativa dos “notoriamente reconhecidos como dementes, ainda que não interditos por sentença, quando internados em estabelecimento psiquiátrico ou como tais declarados por uma junta médica constituída por dois elementos”.

Eduardo Figueiredo
Sobre o/a autor(a)

Eduardo Figueiredo

Doutorando em Direito Público, jurista e docente universitário
Termos relacionados: