Ano novo – rendas ainda mais altas. O aumento do valor das rendas da habitação, que, este ano, pode ir até 2,16%, ocorre numa sequência de anos sucessivos de agravamento especulativo do valor das rendas, e de estagnação dos rendimentos de trabalho, o que significa que a taxa de esforço com a habitação atinge valores incomportáveis para quem tem menores rendimentos.
Estamos, portanto, no centro de uma profunda crise habitacional. Segundo dados do governo, havia no final do ano passado 7705 pessoas sem abrigo, isto é, sem qualquer resposta social de alojamento, e destas, 39% estão na rua há menos de um ano. O número de desalojados aumentou 22% ao longo do ano de 2024. Da espiral gerada pela especulação com o valor dos imóveis, e com o valor das rendas, associada aos baixos rendimentos das pessoas, resulta um nível de empobrecimento brutal.
Isto significa que há dois problemas que precisam de ser colocados no centro da ação política: combate à especulação com o valor dos terrenos e dos imóveis e a proteção dos inquilinos.
Pela calada das noites de Natal, o Governo e o Presidente da República fizeram passar o Decreto-Lei 117/2024, que não é mais do que um estímulo à especulação com o valor dos terrenos. Este decreto-lei permite a reclassificação de terreno rústico para terreno urbano, de forma simplificada, atropelando todos os instrumentos de ordenamento territorial existentes para a área do município, sem qualquer discussão pública, sem qualquer preocupação com o valor ambiental dos solos, sem qualquer preocupação de utilidade pública.
Está aberta a autoestrada da fúria especulativa nos municípios, derrotada qualquer preocupação com o ordenamento do território e feito o convite à corrupção.
Esta alteração no modo de reclassificação dos solos usa a camuflagem de uma reserva de 70% de fogos a ser comercializados a “custos moderados”, como se fosse uma intenção bondosa para responder à crise habitacional. Mas o que é que esta nomenclatura “custos moderados” significa? Simplesmente que aquele valor não pode exceder 125% dos valores medianos no mercado local e nacional. Ou seja, implica um agravamento efetivo do custo do solo e, consequentemente, das habitações construídas.
Sempre que uma autarquia reclassifica terrenos de rústicos para urbanos, esse puro ato administrativo aumenta enormemente o valor do terreno gerando mais-valias urbanísticas, e, porque a reclassificação é da autoria dos poderes públicos, as mais-valias assim geradas deviam ser cativadas publicamente. Penso que este é o único caminho eficaz no combate à corrupção.
Além disso, combater a especulação com o valor dos solos é condição para controlar o valor da construção ao mesmo tempo que confere às autarquias uma capacidade de ordenamento e planeamento do seu território sem a pressão dos investidores e sem a tentação de se deixar corromper.
As nossas cidades continuam repletas de edifícios abandonados, alguns estão trinta, quarenta anos ao abandono e constituem um perigo para a segurança de todos. Não há utilidade nenhuma em reclassificar solos rústicos para obter terreno de construção.
Do que há necessidade é de criar metas para a reabilitação urbana, destinada a habitação permanente. A reabilitação que tem sido realizada, sobretudo nas maiores cidades, destina-se sobretudo a alojamento de curta duração. É preciso inverter esse processo. Os regulamentos municipais de licenciamento de construção têm de se reger por prioridades que coloquem a solução do acesso à habitação no centro das decisões.
Os municípios precisam de planear quotas de recuperação de imóveis e precisam de cativar para si mesmos percentagens desses imóveis para rechear um parque público de habitação sustentável e inclusivo. Portugal tem um dos menores parques de habitação pública da OCDE, e essa é que é a “entorse” que é preciso resolver para caminhar no sentido de promover acesso à habitação.
Resolver a crise habitacional exige um conjunto de medidas complementares, É também preciso definir limites para o valor das rendas em função do rendimento médio das pessoas, bem como controlar o valor da venda dos terrenos e dos fogos habitacionais. A partir de 2013, os preços das habitações aumentaram numa progressão constante. O preço das casas entre 2010 e 2022 aumentou 80%.
É preciso que o acesso à habitação deixe de ser um dos problemas mais graves do nosso país, ele corresponde a uma necessidade elementar que só pode ser acolhida no contexto de um programa de esquerda, comprometido com resolver os problemas das vidas das pessoas e adversário das lógicas do negócio.
