Para além da representatividade: as mulheres no espaço político em Portugal

porMarcela Uchôa

06 de fevereiro 2021 - 14:36
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As diversas lutas que fizeram com que o país tenha vindo a conquistar um lugar de destaque na luta por igualdade de género, não se refletem num real respeito a voz e a representatividade das mulheres nesses espaços.

De acordo com dados publicados pelo Eurostat, a proporção de mulheres no Governo e no parlamento português supera os 36%, o que coloca Portugal acima da média da União Europeia. A chamada Lei da Paridade, adotada por 23 países da UE, inclusive por Portugal (Lei Orgânica nº 3/2006, de 21 de agosto, instaurada no ciclo eleitoral de 2009), constituiu um grande passo relativamente à promoção da igualdade de género na política, tendo contribuído para o crescimento do número de mulheres na vida pública. Contudo, é importante dizer que as diversas lutas que fizeram com que o país tenha vindo a conquistar um lugar de destaque na luta por igualdade de género, seja em cargos de representatividade política, ou mesmo em concursos e cargos públicos como um todo, não se refletem num real respeito a voz e a representatividade das mulheres nesses espaços. Assédio moral, assédio sexual, silenciamentos, risos, deboche – são apenas alguns exemplos das várias formas de violências impetradas àquelas que ousam ocupar lugares que historicamente se constituíram paternalistas e patriarcais.

Essas, dentre outras posturas, refletem que o machismo estrutural que perpassa as nossas relações sociais e de poder precisa ser travado. Para tanto, é preciso irmos além do debate sobre representatividade, que ainda que reconheçamos que tenha possibilitado um crescimento significativo na inserção de mulheres em cargos de destaque na esfera pública e política, tem contribuído pouco, ou muito pouco para uma emancipação verdadeira, o que se reflete nos quadros estatísticos de violência, seja no espaço de trabalho, seja na vida doméstica.

O debate certamente é longo e polémico, mas precisa ser feito de forma incansável; o chamado “feminismo liberal” tem sido um contribuidor importante nesse processo de esvaziamento das verdadeiras lutas políticas do feminismo. É preciso encararmos de maneira frontal que a representatividade feminina na esfera pública portuguesa ainda dialoga pouco com as mulheres que verdadeiramente deveriam representar. Nesse sentido, as inúmeras formas de violências as quais continuamos subjugadas só são possíveis porque esse modelo de feminismo capitalista continua a fazer de nós marionetes da grande engrenagem do sistema. Enquanto a imagem de mulheres bem-sucedidas e empoderadas forem vendidas como mercadorias, e as estruturas de poder e opressão permanecerem inalteradas, mantém-se um ciclo contínuo do capital que na prática não é capaz de promover uma real rutura.

Para Angela Davis esses fenómenos explicam porque existe certa resistência de ativistas que fazem parte de coletivos de mulheres negras, ciganas e também por mulheres brancas da classe trabalhadora pauperizada em se identificarem com esse modelo de feminismo. Um feminismo excessivamente branco, burguês e de classe média, que diz representar, mas na prática continua a servir a engrenagem individualista do capitalismo, expulsando mulheres que representam minorias étnicas e sociais que vivem, sobrevivem e contestam essas estruturas. Se os relatos de violência de género para mulheres que ocupam lugares de destaque é alto, os números para àquelas que são socialmente e economicamente invisibilizadas é ainda mais agravante. Nesse sentido, é preciso ampliarmos a luta pela conquista de espaços de construção coletiva, e reencontrarmos espaços comuns de solidariedade efetiva que possibilite um feminismo para os 99% e não apenas para instrumentalização do mercado. Um feminismo que se empenhe em construir lideranças políticas comprometidas com a conscientização da mulher trabalhadora, pois sabe que só com uma reorganização total da sociedade que beneficie de facto a maioria da população é possível romper com esse sistema de opressão. As mulheres estão na linha de frente dos efeitos devastadores da austeridade, da exploração laboral, no entanto a atual agenda na busca por maior representatividade, seja no quadro de grandes empresas, seja na esfera política não tem sido capaz de travar as inúmeras opressões.

É nesse sentido que a feminista Marta Gonzáles questiona se é possível falar de uma nova política… Existem atitudes e valores na política próprios de mulheres? Ou estas para serem respeitadas têm de adquirir características que representam o paternalismo e a masculinidade? Essas questões na medida em que revelam as inúmeras nuances que perpassam o debate político explicitam desafios, estruturas a serem destruídas e em última instância o desafio da construção de espaços políticos constituídos por mulheres reais, inclusive para que tenham o direito de exercer (se assim quiserem) a maternidade livremente, sem que seja um impeditivo no exercício da sua atividade política.

Para Maria Helena Santos, é preciso reconhecer os avanços, mas não é possível negar que a política continua a ser estruturada pela divisão sexual do trabalho e esse crescimento de representação feminina em cargos de representação, ainda não é acompanhada por uma verdadeira partilha do poder entre os homens e as mulheres políticos/as. Nesse sentido, na política, as mulheres continuam a ser uma minoria, sobretudo, porque são os homens que continuam a dominar esse espaço e elas continuam a ter de lutar para garantir legitimidade ao seu lugar. Ainda há um longo caminho pela frente para que sejam geradas mudanças em termos de uma representação mais substantiva no contexto do poder e da tomada de decisão.

Artigo publicado em Alice News a 2 de fevereiro de 2021

Marcela Uchôa
Sobre o/a autor(a)

Marcela Uchôa

Doutoranda em filosofia política na Faculdade de Letras da Universidade Coimbra. Investigadora no Instituto de Estudos Filosóficos – IEF – UC
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