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Os que estão a mais

Partimos sem contrapartida, sublinhando em tantas paragens a imagem de um país que não nos quis: o brilhantismo dos que partem e a ignorância dos que os instigam a partir.

Cruel este amor que nos leva a nunca esquecer; esta paixão que traz consigo uma esperança imortal, que nos torna exilados que nunca levaram consigo a totalidade de si.

Cruel este interesse que nos leva a agir ainda que à distância, por entre barreiras que a burocracia cria; esta vontade de ser mais para o país que nos considerou a mais.

Partimos para agradar aos números, as mentirosas evidências que mostram menos desemprego, escondendo uma população ferida pela emigração, sangrando sem parar, anémica, anestesiada pelo desespero, pelas infusões diárias de engano, pela administração contínua de um espoliador de direitos. Partimos sem contrapartida, sublinhando em tantas paragens a imagem de um país que não nos quis: o brilhantismo dos que partem e a ignorância dos que os instigam a partir.

Partimos sem pompa e circunstancias, anónimos e despidos de qualquer reconhecimento, para nos vestirmos de esperança e perspetivas a quilómetros de distância. As roupas luxuosas de sonhos e dignidade com que nos cobrem, não fazem esquecer a saudade, apenas a atenuam, pois o amor do nosso país seria a única humilde indumentária que ambicionaríamos.

Somos o excedente que faz falta, nos corredores dos hospitais, nos laboratórios de investigação, no epicentro da iniciativa, no rejuvescimento de um povo da mais rica tradição, no centro de um coração ténue que não faz já pulsar o sangue do País.

Somos o mais fiel retrato de uma nação capaz do brilhantismo com que produz os seus filhos, com condições escassas mas com exigência e empenho ímpares; capaz também da mediocridade com que desperdiça o engenho, com que persegue os que se destacam, com que empurra os idealistas e empreendedores, sequiosos de inovar e construir.

Somos assunto de campanha hoje, esquecidos há anos; o êxodo só se tornou uma corrente demasiado evidente, um rio que desagua noutras paragens, levando-lhes o melhor de um país, cuja mão se estende apenas banqueiros e interesses.

Somos refugiados de uma guerra sem tréguas, contra a dignidade dos que trabalham, a dignidade dos que estudam, a dignidade dos que desfrutam da recompensa merecida de uma vida de luta; uma guerra sem regras ou misericórdia, que nos leva a esquecer o reconhecimento, a remuneração justa, o direito à proteção, aos momentos de doença, ao descanso garantido.

Somos a outra face das muitas moedas gastas para salvar os bancos e os negócios ruinosos; o património, guardado como relíquia insubstituível, são bancos falidos, são companhias públicas arruinadas para alimentar interesses privados, são gestores condecorados pela sua capacidade de serem a cobertura perfeita de um sistema que corrói Portugal há anos, são políticos sem qualquer mérito, colocados minuciosamente em cargos de decisão por compadrio ou favorecimento.

Abril desvanece com cada um de nós, afinal existiu para que fossemos livres no nosso país, o mesmo que nos agrilhoa, impedindo-nos de aspirar a um futuro próspero: amordaça-nos para que sejamos números fiscais, aceitando qualquer migalha para alimentar uma economia doente, competitiva pela recuperação do trabalho escravo.

As mentiras e as dificuldades do dia-a-dia enfraquecem um povo que nunca antes o fora; a falta de comida na mesa, a incerteza mensal de emprego, as dívidas galopantes para com os malditos bancos que salvamos sem que nunca eles nos tenham salvo, tornam ténue a voz de um povo devastado pela guerra sem tréguas imposta pela austeridade.

Persiste a voz que anuncia o fim dos tempos difíceis e austeros, mentirosa a cada silaba, afinal descobriu que o sacrifício de todos é o pagamento fácil para as negociatas e trapaças; persiste a mentira do País que foi salvo, dos ordenados que deixariam de se pagar, as pensões que se esfumariam, procurando camuflar a perda real de rendimento, a perda de empregabilidade, a destruição completa do serviço de saúde e de proteção social, a divida publica que galopou para níveis históricos e a delapidação completo do pais de todos os seus bens, desde a sua companhia de aviação ate cada um de nos, os seus filhos escorraçados.

Portugal soube fazer dos seus refugiados, travando uma guerra contra os que melhor lhe querem; já um dia quis estender a guerra aos que retornaram das colónias, esquecendo que todos nós somos seus filhos, que o coração pulsa ao ver costa, o sol, as paisagens inesquecíveis.

Distantes, não nos permitimos distância. Choramos pelos irmãos que passam fome, entristecemo-nos com as filas cada vez maiores nos centros de (des)emprego, trucida-nos a alma observar um serviço de saúde abandonado, agarrado à vida pela coragem dos que nele trabalham, corta-nos a respiração assistir à pilhagem de todos os bens de um país conquistados em séculos de historia, com o sangue e suor dos nossos pais e avós.

Somos o Abril desvanecido, mas não desistimos de ser o novo Abril tão necessário. Ainda que um dia nos tenham dito estarmos a mais, não desistimos de ser e fazer mais e a mudança passará pela mão de todos os filhos de Portugal e isso nunca desistimos de ser.

Sobre o/a autor(a)

Enfermeiro. Cabeça de lista do Bloco de Esquerda pelo círculo Europa nas eleições legislativas de 2019
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