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Os outros Charlie

Entre os líderes mundiais que foram a Paris condenar os ataques encontravam-se alguns dos maiores responsáveis pela repressão contra jornalistas do mundo, em particular de jornalistas árabes e muçulmanos.

O massacre da Charlie Hebdo, o posterior assassinato de uma polícia e a matança no supermercado kosher Hyper Cachet comoveram o mundo. Jovens fanáticos com armas automáticas desencadearam uma torrente de violência e morte, alimentada por uma fervorosa intolerância. Na redação da revista satírica Charlie Hebdo em Paris, doze pessoas foram assassinadas e onze ficaram feridas. A única culpa que as vítimas podiam ter era a de expressar as suas ideias. Sem dúvida, fiéis à sátira, várias das ideias eram muito ofensivas para muitas pessoas; neste caso, as caricaturas do profeta Maomé.

Depois do massacre, pessoas de todo mundo expressaram a sua solidariedade com as vítimas e com o povo de França. Entre os líderes mundiais que foram a Paris condenar os ataques encontravam-se alguns dos maiores responsáveis pela repressão contra jornalistas do mundo, em particular de jornalistas árabes e muçulmanos.

A Repórteres Sem Fronteiras tem a sua sede central em Paris, não muito longe da redação da Charlie Hebdo. A notícia do ataque chegou rapidamente à sua sede. Lucie Morillon, diretora de programas da RSF, foi uma das primeiras pessoas a chegar ao local após o massacre contra os jornalistas da Charlie Hebdo. Entrevistei-a na cidade de Nova York, no dia seguinte à sua participação na marcha solidária de domingo 11 de janeiro em Paris, que juntou mais de um milhão de pessoas. Ela recordou assim os acontecimentos da quarta-feira sete de janeiro:

“Estávamos numa reunião a tratar de questões importantes, quando um colega meu entrou na sede gesticulando como se se passasse algo importante e nos quisesse interromper. Eu fiz-lhe um olhar severo como que a dizer-lhe 'Espero que seja importante'. E ele disse: 'Passou-se algo de grave. Parece que houve disparos contra a Charlie Hebdo e poderá haver mortos'. Foi completamente comovente, totalmente surrealista. Agarramos nas nossas malas, cadernos e telefones e corremos para a sede da Charlie Hebdo. Fica a cinco estações de metro da nossa sede, pelo que chegámos depressa. Não havia ninguém, exceto os vizinhos juntos nas áreas restritas, até que chegaram o Ministro do Interior, o presidente da Câmara de Paris e um conjunto de oficiais. Um dos oficiais reconheceu-nos, a mim e ao secretário-geral da Repórteres Sem Fronteiras, Christophe Deloire, e pudemos entrar com eles na área restrita. Terminamos à frente da sede. Não entrámos porque era a cena do crime, mas podíamos ver as balas no solo e pessoas a chorar. Um homem saiu da sede e lançou-se nos braços do Presidente [François] Hollande, que já tinha chegado, e disse entre lágrimas, 'Charb est mort', 'Charb está morto'”. Referia-se a Stephane Charbonnier, caricaturista principal e diretor editorial da Charlie Hebdo.

No domingo, dia das marchas de solidariedade em toda a França, onde se juntaram cerca de quatro milhões de pessoas, o grupo declarou num comunicado de imprensa: “A Repórteres Sem Fronteiras saúda a participação de muitos líderes estrangeiros na marcha de hoje em Paris, em homenagem às vítimas dos ataques terroristas da semana passada e em defesa dos valores da república francesa; mas está indignada com a presença de autoridades de países que restringem a liberdade de informação”. O grupo declarou que estava “consternado pela presença dos líderes de países onde jornalistas e blogers são perseguidos sistematicamente, como Egito, Rússia, Turquia e Emiratos Árabes Unidos”.

Em todo o planeta foram difundidas fotos e vídeos dos líderes mundiais de pé, de braço dado, encabeçando a grande manifestação. Houve muito barulho nos Estados Unidos devido à ausência de autoridades de alto nível do governo Obama. Apesar de o promotor geral Eric Holder estar em Paris nesse dia, inexplicavelmente não assistiu à marcha. Por outro lado, assistiu o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Egito, Sameh Shoukry, cujo governo encarcerou muitos jornalistas; particularmente três jornalistas da Al Jazeera, que permanecem detidos há mais de um ano: Peter Greste, Mohamed Fahmy e Baher Mohamed.

O embaixador da Arábia Saudita em França também participou na manifestação. Dois dias antes, o seu governo tinha chicoteado o blogger Raif Badawi, que foi condenado a mil chicotadas que a monarquia saudita administra a um ritmo de cinquenta por semana. Delphine Hagland, diretora da Repórteres Sem Fronteiras nos Estados Unidos, explicou: “Decidiram dividir as mil chicotadas em várias sessões porque tinham medo de matá-lo”.

Agora foi informado que os líderes mundiais não estavam na marcha, mas que se reuniram numa rua fechada, longe da manifestação e sob vigilância para fazer a sessão de fotos, da qual saiu a imagem que o mundo viu. Em poucas palavras, foi o povo que tomou a liderança nesse dia, não os líderes. “Je Suis Charlie" ou “Eu sou Charlie”, foi o lema de muitos. Outros publicaram no Twitter fotos ou transportaram cartazes que diziam “Eu não sou Charlie”, condenando a violência sem apoiar as caricaturas da Charlie Hebdo. Uma muçulmana tinha um cartaz que dizia “Je Suis Juif” (“Eu sou judia”, em espanhol), em solidariedade com as vítimas judias. Outras pessoas tinham cartazes que diziam “Eu sou Ahmed” por Ahmed Merabet, o polícia francês muçulmano que foi assassinado em frente à sede da revista.

Cerca de quatro milhões de pessoas saíram às ruas de França no passado domingo exigindo uma sociedade mais pacífica, na qual a liberdade de imprensa e a tolerância religiosa sejam mais fortes que a violência e o ódio.

Artigo publicado em Truthdig em 14 de janeiro de 2015. Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna. Texto em inglês traduzido por Inés Coira para espanhol para Democracy Now. Tradução para português de Carlos Santos para Esquerda.net

Sobre o/a autor(a)

Co-fundadora da rádio Democracy Now, jornalista norte-americana e escritora.
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