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O vírus da precariedade

Os caminhos do vírus percorrem agora as fragilidades das condições socioeconómicas mais vulneráveis. O vírus explora os problemas que o modelo económico criou.

A última reunião no Infarmed terá acabado sem sequer um “adeus” aos epidemiologistas, dizem as notícias. Contudo, algumas das conclusões que foram apresentadas não podem ser ignoradas ou desvalorizadas porque são dados relevantes para atacarmos a pandemia.

Não compreendo as ansiedades que foram criadas com o fim das reuniões com os epidemiologistas. Desde o início que desgostei do modelo de reuniões à porta fechada, onde as apresentações saíam para os jornais por relatos de “fontes” nunca identificadas e os dados científicos eram apresentados com as interpretações políticas convenientes a quem estava perante o microfone e as câmaras de televisão. Não tenho saudades disso, nem me parece que o país tenha perdido grande coisa na fase em que estamos. A ciência deve ser pública, de acesso fácil e direto.

Estou mais preocupado pela produção científica existente não ter a divulgação pública que merecia e à qual as pessoas deviam ter direito. Veja-se, a título de exemplo, como os números provisórios passaram a reinar nos boletins diários da Direção-Geral da Saúde da última semana, esses documentos perderam a informação da distribuição etária dos infetados e a já atribulada qualidade dos dados pormenorizados por concelho parou no tempo, suspensa em nome de uma qualquer atualização que nunca chegou.

Acredito que o incómodo não será só meu, apesar de me confessar atraído por números, estatísticas e previsões. A informação é um direito que temos e devia ser salvaguardado em matérias como esta. Espero que isso seja corrigido rapidamente, até porque um dos estudos recentes é muito importante para a nossa reflexão comum.

Uma das conclusões que o respeitado epidemiologista Henrique Barros apresentou é que “as características demográficas dos casos covid-19 mudaram com o tempo, estando os migrantes em maior risco”. Os números mostram isso mesmo: a percentagem de casos covid-19 entre os imigrantes no distrito de Lisboa é de 23,4%, enquanto no distrito do Porto é de 15,7%. Ser imigrante em Lisboa ou Porto aumenta a probabilidade de ser infetado. Porquê?

Se juntarmos a esta informação as declarações do delegado de Saúde Regional de Lisboa e Vale do Tejo, Mário Durval, que afirmou que a “precariedade laboral leva muita gente infetada a continuar a ir para o trabalho porque precisa de ganhar dinheiro todos os dias para comer”, agarramos o fio do novelo que explica a situação que se vive.

O vírus está agora a atingir situações de empregos precários, trabalhos temporários, de baixos salários e informalidade, da desproteção social e, muitas vezes, de pobreza. São trabalhadoras e trabalhadores que nunca pararam porque cumprem funções essenciais, mas também porque parar significava perder rendimento e isso não lhes era comportável. Como muitas destas funções são desempenhadas por imigrantes, está feita a ligação à conclusão anterior. Os caminhos do vírus percorrem agora as fragilidades das condições socioeconómicas mais vulneráveis. O vírus explora os problemas que o modelo económico criou.

A semana que agora termina mostra como a estratégia de correr atrás do vírus tem limitações. É possível fazer mais? Parece ser necessário introduzir várias mudanças que incluem respostas às questões económicas e sociais

As condições habitacionais também são relevantes para esta análise. Os epidemiologistas demonstraram como a sobrelotação de alojamentos, com a coabitação de famílias no mesmo espaço, também faz parte do problema. Feita a análise, falta a ação.

A semana que agora termina mostra como a estratégia de correr atrás do vírus tem limitações. É possível fazer mais? Parece ser necessário introduzir várias mudanças que incluem respostas às questões económicas e sociais: combater o vírus passa por combater a precariedade laboral, social e habitacional.

São os dados científicos que mostram como o vírus está a percorrer os caminhos das nossas fragilidades sociais e económicas e nos indicam quem está em situações de maior risco. Informações importantes que os poderes públicos não podem ignorar ou silenciar. Proteger quem está em situações mais vulneráveis é dar passos em direção à nossa proteção generalizada. É isso que temos de fazer.

Artigo publicado no jornal “Público” em 10 de julho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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