O relatório da Comissão Independente para a Descentralização (CID) não primou pelo timing da sua apresentação, apanhando meio país a banhos e a outra metade com inveja disso. Mas as reflexões que levanta fazem parte de um debate importantíssimo para o futuro do país.
Uma parte do fado nacional passa pelas queixas do país que anda a diversas velocidades, os lamentos contra o interior esquecido e a violenta crítica ao centralismo lisboeta. Passados alguns assomos momentâneos e indignações fulminantes, tudo fica como estava e nada verdadeiramente muda. Ora, é à pasmaceira destas águas calmas que o relatório traz alguma agitação positiva.
A primeira nota de realce, ainda mesmo de entrar na análise do relatório, é perceber que o que foi entregue não é o que foi pedido. E ainda bem. PS e PSD aprovaram sozinhos a criação da CID com a intenção de ter um carimbo técnico ao acordo político que fizeram para o pacote da descentralização administrativa. Esse arranjo do centrão, que marcou o início do reinado de Rui Rio à frente do PSD, resultaria num conjunto de escolhas de municipalização de serviços, colocando a regionalização ainda mais fundo na gaveta. Por isso, a posição da CID demonstra uma verdadeira independência e isso merece reconhecimento. E mostra essa independência com um alinhamento que é uma derrota para PS e PSD pois conclui que a verdadeira descentralização só é possível com a regionalização.
O tema da regionalização tem sido transformado num tabu nos últimos anos. Para isso não tem sido indiferente a vontade de Marcelo Rebelo de Sousa. Pelo contrário, dos lados de Belém não sopram bons ventos para a regionalização e isso assusta até alguns dos seus fervorosos defensores. Talvez por isso, o Primeiro Ministro preveniu ainda recentemente sobre as tentações nesta matéria.
António Costa diz defender a regionalização, mas não quer uma guerra com o Presidente da República. Há alguns meses ele achava “que devemos evitar colocar um tema fraturante entre os decisores políticos e o Presidente da República, entre o país e o Presidente da República”. Quando o Eng. João Cravinho disse ser possível que em dois anos se fizesse um novo referendo e a regionalização, ignorou o vaticínio recente do Primeiro Ministro: “Não creio que nos mandatos do atual Presidente da República o processo avance significativamente. Convém conhecer a história de como fracassou o anterior referendo à regionalização e qual o quadro que o então líder do PSD, Marcelo Rebelo de Sousa, criou para que o processo possa um dia ser retomado”. Mais uma vez é o próprio PS a tirar o tapete às suas bandeiras.
Do lado do PSD saíram a terreiro um conjunto de vozes com o mesmo refrão contra a regionalização, apontando o destempo da proposta. Rui Rio ainda não se pronunciou, mas veremos se também este apaixonado pela regionalização não irá colocar um balde de água fria nas expetativas.
Da minha parte, retomo a ideia da CID ter prestado um grande serviço ao país. Existe agora uma proposta que responde estruturalmente às questões tradicionalmente levantadas no debate sobre a regionalização. Começa por uma constatação relevante e mobilizadora - “os países mais desenvolvidos são mais descentralizados” -, apresenta um mapa de cinco regiões administrativas, sugere modelos de financiamento e cria soluções para o combate à corrupção. Um trabalho que não tem de ser um guião a ser seguido à letra, mas que é um importante contributo para as questões fundamentais a serem dirimidas.
Não tenho uma visão acrítica do relatório e vejo hipóteses para melhorias. Uma delas, talvez a mais fundamental, prende-se com o modelo eleitoral proposto. O sistema de círculos uninominais indicado é uma cedência ao programa eleitoral do PS e seria um retrocesso na qualidade da democracia e nos avanços recentes pela representação com igualdade de género. A solução seria um sistema proporcional com círculo único e listas plurinominais, garantindo a manutenção do sistema proporcional que é o mais fiel na representação da votação dos eleitores e eleitoras.
O debate ainda agora começou e espero que dê frutos, vencendo o tabu presidencial em curso. Este é um desafio que o país não pode falhar.
Artigo publicado no jornal Público a 2 de agosto de 2019.