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O suicídio indiano

O lockdown indiano mostrou ser uma ferramenta de opressão – em que a normalização da violência e do ódio contra trabalhadores migrantes e muçulmanos se tornam o novo normal.

Actualmente, cadáveres estão espalhados por toda a Índia – maioritariamente trabalhadores e trabalhadoras imigrantes e pobres. Depois de dois meses de lockdown, enquanto desesperadamente tentaram voltar às suas casas, morreram de exaustão, fome, ataque cardíaco, acidentes de viação, entre outras causas. As suas vidas, vidas expostas cruamente, não são dignas nem de luto nem de ajuda – ao menos para o Governo e a classe média alta, que se referem a eles (junto dos muçulmanos) como propagadores do coronavírus na Índia. A maioria de trabalhadores e trabalhadoras migrantes ficou desempregada desde o lockdown nacional imposto há dois meses, desencadeando o maior movimento de migração intranacional visto na Índia desde 1947.

Enquanto o lockdown é estendido até 31 de Maio, surge nas redes sociais a hashtag #MigrantLivesMatter, propondo-se chamar a atenção para a crise humanitária que atravessa o país. Vídeos circulam na Internet mostrando o sofrimento desses trabalhadores. Num deles, vê-se uma criança tentando acordar a sua mãe já morta numa estação de comboio. A mulher era uma entre as trabalhadoras migrantes que chegaram até Muzaffarpur num comboio especial para trabalhadores, que partiu de Ahmedabad. Ela morreu devido ao calor, à fome e à exaustão, ainda a bordo do comboio, no dia 25 de Maio. Devido à inexistência de água e comida a bordo e longos atrasos (que chegam a atingir 40 horas) muitos podem estar, neste momento, a morrer nesses comboios.

Subitamente, o primeiro-ministro Narendra Modi, nacionalista hindu, impôs um lockdown no dia 2 de Março, que se estendeu à totalidade da população indiana – foi feito sem planeamento ou consulta popular, em apenas quatro horas. Esse caos organizado governamental levou a uma crise humanitária de proporções épicas, reproduzindo desigualdades já existentes e a exclusão da população marginalizada da sociedade indiana.

Os mais atingidos pelo lockdown são a população mais pobre do país – migrantes temporários, cujo número se estima em mais de 100 milhões. Dias após o anúncio do lockdown, surgiram crónicas perturbadoras sobre a morte de migrantes, que morriam de fome, fadiga, acidentes, enquanto tentavam viajar – alguns percorrendo mais de 1000 quilómetros percorridos a pé – das cidades até às aldeias de origem.

Os terminais de autocarro no interior das cidades e nas fronteiras entre estados tornaram-se lugares de violentos confrontos entre migrantes e a polícia – esta recorria à violência brutal, espancando migrantes por violarem as regras do lockdown. A quantidade de violência estatal feita em nome da protecção do povo contra o povo é simplesmente ridícula, bizarra e inaceitável – seja por que critério for. Sataria Hembrom, de 31 anos, caminhou 1800 quilómetros até à sua aldeia em Chaibasa, tendo partido de Bombaim com mais seis pessoas. Dezasseis trabalhadores migrantes foram atropelados enquanto dormiam nos carris do comboio perto de Aurangabad. Muitos migrantes têm usado os carris como forma de regressar aos seus lares, através do duro Verão indiano.

Foi reportada a morte de mais de 300 pessoas directamente relacionadas com o lockdown: mortes causadas pela fome, pela dificuldade financeira, pela exaustão, pela violência policial, pela falta de atendimento médico. Há relatórios que informam a morte de 338 pessoas entre 19 de Março e 2 de Maio, todas relacionadas com o lockdown.

No dia 9 de Maio, a polícia recorreu à violência contra centenas de migrantes, enquanto estes circulavam pelas ruas do distrito de Surat, em Gujarat, exigindo condições para voltarem às suas casas ou emprego para sobreviverem. Mais de 100 trabalhadores foram detidos. É interessante notar que muitos estados tentaram impedir os trabalhadores que voltassem às suas casas. O governo de Karnataka retirou o pedido de comboios especiais, pois imaginaram que isso geraria escassez de mão-de-obra no estado.

Muitos estados indianos, como Uttar Pradesh, Madhya Pradesh e Gujarat, avançaram com emendas à lei do trabalho, aumentando as horas de trabalho diárias de oito para 12. Isso significa a destruição dos direitos básicos dos trabalhadores. A Organização Internacional do Trabalho expressou “profundas preocupações” em relação às mudanças, fundamentalmente opostas aos direitos humanos dos trabalhadores e trabalhadoras migrantes. De acordo com o economista-chefe do FMI, Gita Gopinath, a Índia gasta apenas 1% de seu PIB em medidas de combate ao coronavírus – o que mostra que o Governo não está a fazer o suficiente.

Enquanto cresce o número de infectados, também cresce a miséria dos migrantes. O caso indiano faz-nos pôr em questão a efectividade de estados “democráticos” na protecção dos direitos dos marginalizados e vulneráveis em tempo de crise. O lockdown indiano mostrou ser uma ferramenta de opressão – em que a normalização da violência e do ódio contra trabalhadores migrantes e muçulmanos se tornam o novo normal. Mesmo que milhões de migrantes ainda participem nos destinos do Estado indiano, o nível de violência mostra que, na verdade, foram excluídos do sistema político – expulsos para os lugares da indiferença e da abjecção.

No momento em que termino este artigo, muitos mais trabalhadores migrantes morrem em lugares remotos, e muitas dessas mortes serão noticiadas pela imprensa tradicional. Os pobres são forçados a acabar com a própria vida, da forma mais desumana. O primeiro-ministro, Narendra Modi, deve ser responsabilizado por esses suicídios. A crise da covid-19 é uma dádiva para líderes autoritários, permitindo-lhes brincar com a vida humana, em plena imunidade. A escritora Arundhati Roy disse: “Precisamos dos julgamentos da covid. Num tribunal internacional”. Eu concordo – definitivamente.

Artigo publicado em publico.pt a 8 de junho de 2020

Sobre o/a autor(a)

Investigador no Centro para o Estudo das Línguas e Sociedade Indianas e doutorando no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.
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