João Miguel Tavares escreveu no Público de 9 de Abril um texto que decerto pretendia ser engraçadinho, ao estilo “agente provocador” da direita, com um cheirinho de Governo Sombra. Mas, como lhe falta o talento e sobra o trauliteirismo, o riso ganha um tom de escárnio algo sádico e, sobretudo, pobremente fundamentado.
O que diz este novo bobo da nossa provinciana corte? Entre outras coisas, insinua que há doutorados e pós-doutorados a mais, pela conjugação do que o autor apelida de efeito “Mariano Gago”, “limitações e falta de competitividade da economia portuguesa” e emergência da crise e da austeridade.
Primeiro engano: com todos os seus defeitos e preferências, Mariano Gago fez um exemplar trabalho de edificação de um sistema moderno de I&D, com instituições, critérios, recursos e um mínimo de transparência – tudo o que falta atualmente na FCT e na política pública deste Governo, assente na fúria da destruição (nada) criativa.
Ora, sobre tais desvarios, nem uma palavra do meu homónimo João Miguel. Nem sobre a clara privatização dos recursos públicos em favor das empresas, como se só a investigação aplicada contasse; como se fosse possível fazer patentes e aplicações sem uma prévia, sólida e sistemática aposta na investigação de base, em universidades, em centros de I&D, com estabilidade, imaginação, experimentação, direito a testar e a errar, como é apanágio da ciência, essa “verdade que é um erro à espera de vez”, roubando a expressão a Virgílio Ferreira.
Mas o cronista do espírito do tempo também nada diz sobre a estrutural falta de “apetência” das empresas portuguesas pela contratação de investigadores ou pela tradicional aversão a qualquer aposta estratégica na inovação, talvez por os nossos “empreendedores” gostarem muito mais da privatização do Estado e da apropriação dos seus recursos, entre os quais o sistema de investigação nacional, esperando que lhe caia nas mãos o fruto podre, como acontece na saúde e na educação, para mais rapidamente utilizarem na avidez do lucro imediato os recursos humanos formados pelo Estado.
Esquece ainda o generalista sem informação que Portugal, apesar das políticas de convergência de Mariano Gago e decerto já contando com o efeito da destruição levada a cabo por este governo, acumula um défice profundo em relação ao resto da Europa. Bastava uma consulta ultra rápida à Pordata, preguiçoso Tavares: o nosso país tem apenas 8,9 investigadores por mil ativos, contra 11,2 da UE a 28. Claro que, em 1986, Portugal tinha ainda muito menos: 2,3.
Talvez o jornalista que não faz investigação desejasse, lá no seu íntimo, um regresso ao passado, em que os cientistas eram uma reduzida elite e o país ainda mais desgraçado no seu atraso. Nem por um momento João Miguel Tavares se coloca a questão de que é precisamente i) a desqualificação dos nossos gestores e patrões; ii) a errática ou mesmo ausente priorização dos setores inovadores e qualificantes da economia e iii) o tempo médio e longo que o aumento de massa crítica em I&D exige para se repercutir na competitividade da economia que explicam a incapacidade do mercado de trabalho em absorver doutorados e pós-doutorados.
Finalmente, João Miguel não resiste ao insulto: trata os investigadores do CES de Coimbra como subalternos acéfalos ao serviço da elite académica, de cujos favores depende para sobreviver. O que mais posso dizer sobre esta alarve consideração? Que ela mora bem fundo em João Miguel, uma vez que a pretensão crítica da sociologia, para ele, não é científica.
Ora, meu caro João Miguel: a Sociologia (ou qualquer outra ciência) ou é crítica ou não é ciência; ou se questiona e questiona o mundo onde vive, incluindo as condições sociais em que se pratica a investigação, ou será um ninho fértil de positivistas sem alma e sem coração, não um exército de descamisados, mas talvez uma aglomeração de génios social e culturalmente inúteis, burocratas de serviço das elites, governamentais ou empresariais.
Mas João Miguel vive no mundo das pedras e nada quer saber disto, tal a sua preocupação cientista com a objetividade, de que faz prova farta no seu artigo.
Artigo publicado em p3.publico.pt em 13 de abril de 2015