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O Outro que nos é próximo

O filme de Nadine Labaki, “E agora, onde vamos?”, conta-nos uma doce comédia dramática e é também um exercício para a desconstrução do Outro e das fronteiras ténues que nos separam.

Vi-o pela primeira vez na Festa do Cinema Francês, em Lisboa, na sua edição de 2011. Uma vez disponível no circuito comercial, revi-o agora, com gosto. “E agora, onde vamos?”, cujo titulo original é “Et Maintenant, On Va Où?”, é a segunda longa-metragem da atriz e realizadora libanesa Nadine Labaki, depois do enorme sucesso de "Caramel", em 2007. Trata-se de uma comédia dramática sobre as divergências de um povo marcado pelos conflitos religiosos, que venceu o Prémio do Público no Festival de Cinema de Toronto e foi a escolha do Líbano na corrida à nomeação ao Óscar de melhor filme estrangeiro.

Este filme conta-nos a história de umas mulheres-coragem que habitam uma pequena aldeia remota no Líbano, onde se vive sob a égide do conflito latente entre cristãos e muçulmanos, embora todos convivam pacificamente. A crise do conflito permanece adormecida num sono revolto e com insónias. Aquelas mulheres, fartas de carregar o luto dos seus filhos, irmãos e maridos, assistem, inconformadas, às pequenas brigas potencialmente violentas entre os homens da cidade. Pequenos rastilhos são incendiados, entre equívocos e a chegada de informação sobre a guerra religiosa que começa a eclodir no país, através de uma televisão comunitária, janela para o mundo que permitiu a chegada da aldeia ao século XXI!

Todos os planos e estratagemas são colocados em prática como ação conjunta, cristãs e muçulmanas unidas, para que os homens se distraiam do seu ódio inconsequente e estúpido, desde a contratação de bailarinas russas a bolinhos de haxixe. O Padre e o Iman alinham nas tentativas de apaziguamento. Afinal, já tantos morreram, esses muitos que jazem num cemitério comum dividido em dois – “mesmo mortos continuam separados”.

A história tem o seu final suspenso e a questão que coloca, “e agora, onde vamos nós?”, abre-nos a porta para a reflexão que surge a partir da reconversão forçada daquelas mulheres que se colocaram no lugar do outro para que cada um passe agora “a viver com inimigo”. Além disto, o tom cómico e ternurento que alimenta os diálogos e peripécias vividas naquela aldeia remota revela-nos uma outra cultura que nada tem de bizarro. Naquele sítio do planeta mulheres e homens experimentam paixões, ódios, tal como nós, aqui deste lado. Têm contudo um sentido de humor inerente que é simplesmente delicioso.

O tema do outro é sem dúvida a trama de fundo, uma vez que é a diferença religiosa que origina o conflito. Contudo, este outro, que se odeia, partilha a sua comunidade religiosa habitando uma comunidade comum. É o nosso vizinho, o miúdo que brinca com o nosso filho. A absoluta diferença que permite distinguir outros como Outro, como singularidade incomensuravelmente distinta, é afinal o resultado de uma ténue fronteira que as mulheres demonstram poder ser transposta. O que resta é o espaço comum, as experiências comuns, o bem comum. Fora as provocações e o ódio irracional, o outro poderá ser apenas alguém que nos é próximo.

Labaki deixa-nos com estas questões mas fá-lo de um modo muito pouco sistemático e talvez inadvertidamente. De qualquer modo, o facto é que conhecemos e nos afeiçoamos a várias, a cada uma das personagens, que não se confundem umas com as outras, mesmo quando pertencem à mesma comunidade religiosa. Não poderá ser então isso o que distingue cada uma daquelas pessoas.

Esta possibilidade da singularidade e da sua expressão justificam a afirmação de Hannah Arendt (1) de que “ser diferente não equivale a ser outro” (2), isto é, a pluralidade baseia-se na singularidade e não na alteridade - a diferença baseia-se mais na distinção do que no mero processo de diferenciação e multiplicação. Trata-se de uma radicalização do ponto de vista, no sentido em que cada ser humano constitui um inigualável ponto de referência do mundo e de si mesmo. Cada ser singular é um centro a partir do qual o mundo e a alteridade são convocados e avaliados.

“E agora, onde vamos?” ensina-nos que aceitar a diferença não é estabelecer fronteiras e, assim, conversar com os outros como se estivéssemos à janela – é antes aprender a partilhar o mesmo chão.

(1) Filósofa política contemporânea, autora da importante obra As Origens do Totalitarismo(1951), entre outras.
(2) in Hannah ARENDT, A Condição Humana(1958).

 

 

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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