Olho as mãos enrugadas e não as reconheço como minhas. Não parecem as mesmas que se entrelaçaram em outras, quando brindavam ao amor e a transpiração colava corpos num delírio estonteante. Nem tão pouco se afiguram com aquelas que ergueram bandeiras de revolta em tardes quentes, enquanto caminhávamos sem medo rumo a uma incerteza que seria, certamente, melhor que a opressão e a falta de Liberdade.
Não me tornei na pessoa que pensava vir a tornar-me e só agora começo a anuir essa ideia. Os sonhos morrem-nos quando os nossos passos deixam de ser plurais. Quando as nossas exigências e ações não refletem outros anseios. Quando o nosso grito já não ecoa as vozes da diversidade. Talvez pelo cansaço ou muito possivelmente pela fantasia de que já tinha feito a minha parte. Essa cegueira que nos faz olhar apenas para nós e acaba por nos deixar assim, num quadrado aberto ao mundo, onde vejo quem passa, mas ninguém me repara.
Um destes dias, já não sei bem qual, galoparam da rádio palavras que despertaram sentidos que julgava mortos. Habitualmente ligo o aparelho quando acordo e apenas volto a dar pela sua presença ao deitar-me. Não me atrapalha as leituras, não me inquieta enquanto bebo café. Há muito tempo que é assim. Não altero o som, muito menos a frequência. É quase como se ele tivesse vida própria, ou talvez até tenha.
Naquele dia alguém opinava sobre a chegada de barcos apinhados de gente. “Eles”, “os outros”, escutei. E estremeci. Recordei pessoas de outrora, que descansavam ao relento três horas em sobressalto para continuar a caminhar campo afora e alcançar a fronteira. Quase sem pertences, apenas recordações e esperanças. Quantas e quantos não acompanhei eu? Até que um camarada as alcançava em outro ponto, para outra jornada, que jamais parecia ser a última.
Não são “os outros”. Sou eu, mesmo aqui desta janela. Somos nós em qualquer parte do mundo, ainda que me tenha deixado ficar também eu num entorpecimento rodeado de memórias, livros e pouco mais. Paralisei num país que se esqueceu de mim. As peles engelhadas não são atrativas. Os ossos enfraquecem e não se vislumbra muito para oferecer além da caridade e da acomodação.
Desde aquele dia que penso nisto. Será o corpo capaz de atrofiar a nossa capacidade de transformar? Conseguimos, em algum momento, sobretudo neste já tão avançado, recuperar coragens adormecidas e romper com o vício de nada fazer? Rasgar a passividade que nos vai tirando forças e definhando o pensamento?
Amanhã não venho para a janela. Está decidido. Vou sentar-me a escrever com esta mão enrugada. Em folhas soltas. Muitas. Com tipos de letras tão diferentes como os que conseguir desenhar e na maior diversidade de tons que possa encontrar na velha caixa de lápis que guardo na escrevaninha.
Escreverei simples frases como “eu sou o outro”, “tu és eu”, “o outro és tu”.
Sairei então para a rua. Entrarei em todas as portas que estiverem abertas e baterei às fechadas. Não me importa se são comerciais, religiosas ou outras. Se são casas de gente que sabe ser gente ou de quem mergulhou igualmente na palidez de ir vivendo. Colocarei uma folha em todas as caixas de correio que encontre no percurso que os meus passos lentos ainda me permitem fazer. Procurarei ruas diferentes, todos os dias, até que possa voltar serenamente a esta janela e acenar ao mundo com estas minhas mãos (ainda) de criança.