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O mundo digital nas mãos de um Trump

Creio que ninguém duvidará que o mundo digital é hoje fulcral para as actuais sociedades e crucial para o desenvolvimento de um melhor futuro. Assim creio ser fundamental perceber de quem o mundo está dependente em termos geopolíticos e económicos para as suas necessidades digitais.

Enquanto o primeiro ministro português e a UE repetem constantemente que o plano de recuperação económica pós-covid passa em parte pela transição para o digital, os EUA de Trump consolidam ainda mais a sua hegemonia no controlo das tecnologias digitais. E se há coisa que vimos recentemente é que os EUA não se coíbem de usar o imenso poder que têm sobre a tecnologia americana para os fins que bem lhes aprouverem. Vimo-lo com a sua guerra à Huawei e com a China, a quem está neste momento a tentar impedir de produzir os próprios processadores (pelo embargo de equipamento a SMIC).

Isto é possível pois todos os computadores, telemóveis, super-computadores ou qualquer aparelho digital necessitam de um processador e quase todos os processadores utilizam um de dois conjuntos de instruções, x86 ou ARM. Estes conjuntos de instruções são os blocos fundamentais para a construção de processadores, e consequentemente para o mundo digital e em boa parte para a robotização e automação. Ambas as tecnologias pertencem a empresas privadas, a x86 pertence à Intel e a ARM está em processo de ser comprada pela Nvidia, ambas dos EUA. Sem uma licença destas empresas é ilegal (e talvez impossível) fabricar um processador destes.

A juntar à desgraça, a tecnologia de fabrico de processadores, especialmente as formas de litografia mais avançadas com processos de luz ultravioleta (necessários para fabricar transístores menores de 28nm), também está largamente dependente de empresas de tecnologia dos EUA (como a Lam Research, KLA e Applied Materials).

Relativamente a tecnologias de engenharia de processadores e computação existem algumas alternativas aos conjuntos de instruções x86 e ARM. Um deles é o Risc-V, desenvolvido inicialmente em faculdades como ferramenta de estudo e com uma licença bastante mais aberta.1 Nota-se no entanto cujo desenvolvimento está ainda bastante incipiente e tem graves deficiências no seu ecossistema (poucas ferramentas de desenvolvimento e uma ausência quase total de software utilizado pela maioria das pessoas e de profissionais), apesar de recentemente haver um aumento considerável do investimento nela.

Outro caso, o do OpenPower, que só muito recentemente tem uma licença livre, mas cujo ecossistema é bastante mais robusto e existem muito mais aplicações de código livre a funcionar, mas tendo pouco software comercial disponível. No entanto creio que actualmente só a IBM (uma empresa privada do EUA) faz processadores competitivos que usam o OpenPower mas com design privado.2

 

Verdade seja dita a Europa, reconheceu recentemente esta deficiência geoestratégica e criou a European Processor Initiative (EPI), uma iniciativa financiada para a criação de processadores “domésticos” desenhados na Europa.3 Mesmo assim está ainda dependente da ARM para o processador central (pelo menos até 2023, de acordo com as informações disponibilizadas no site).

A EPI direciona-se especialmente para a criação de processadores para supercomputadores, automóveis4, AI e DataCenters/IoT… Note-se a aposta na tecnologia para grandes empresas e a falta desta nos produtos de consumo.

Está visto que esta iniciativa não está a promover o desenvolvimento de sistema livres visto estar a ser desenvolvido por um consorcio de empresas privadas, nem parece haver intenções de abrir a tecnologia ao publico, pois não há sequer menção disso. Ou seja, mais uma vez a UE está a investir dinheiro publico em tecnologia privada.

Alternativas livres existem muito poucas, de dar destaque ao European Laboratory for Open Computer Architecture, pelo Barcelona Supercomputing Center, que inclui financiamento da UE (mas aposto que muito menos do que para a EPI e para processadores de carros alemães). Ainda pouco se sabe de quando terão resultados e do ecossistema de programas disponível, certamente ainda demorará muito tempo.

Além deste existem uma série de pequenos projectos, a maioria comunitários, para a criação de processadores, computadores, telemóveis e afins com licenças livres, todos eles imensamente distantes de poderem oferecer uma solução satisfatória para a maioria dos casos e de serem competitivos com uma indústria que investe anualmente biliões de dólares na criação de propriedade privada intelectual. Mas admita-se que as recentes acções de Trump assustou muita gente e começa-se a ver algumas movimentações para a criação de alternativas menos dependentes dos EUA.

Relativamente à tecnologia de fabrico de processadores tanto quanto posso dizer aparentemente não existe alternativa à tecnologia privada de empresas dos EUA. As quais estão neste momento a ser bastante condicionadas, pelo governo dos EUA, sobre a quem, quando e se podem, ou não, vender a sua tecnologia.

A ideia de que no futuro Trump, ou um qualquer sucessor dele, queira obter o controlo total da produção de processadores parece a cada dia menos descabida.

Resumindo, a indústria de processadores, vital para a nossa sociedade, é controlada por poucas pessoas e nenhuma delas tem como principal objectivo garantir uma melhor sociedade para toda a gente. Muito pelo contrário, lucros ou geoestratégia falam bastante mais alto nestes tempos.

No fim do dia temos um problema de propriedade, primeiro por estar na mãos de privados, segundo por estar sob a alçada do nacionalismo norte-americano, ou de um qualquer outro que as venha a desenvolver.

Isto é fruto de décadas de falta de investimento publico na produção de tecnologia que possa ser utilizada por todos, ou até culpa de investimento publico que directa ou indirectamente, financia o desenvolvimento de tecnologia que fica nas mãos de privados. Da falta de regulação que permite a existência de monopólios (ou duo/triopólios, isto é monopólios de classe, que dão a falsa sensação de liberdade). Desde a ausência de regulação, que permite que a tecnologia de privados seja usada sem o mínimo de transparência de como funciona, até aos fortes indícios de que pode invadir a privacidade e roubar os dados dos utilizadores particulares ou até de governos. Fruto também da falta de um serviço e ensino publico que mesmo tendo alternativas livres usa, ensina e incentiva ao uso de soluções privadas.

Para alterar isto é necessário, no mínimo, um forte investimento no desenvolvimento de tecnologias livres e uma grande aposta na utilização das mesmas. A liberdade numa sociedade digital depende delas.


Notas:

1Mas de notar que atualmente os maiores patrocinadores desta são empresas privadas que desejam fugir aos monopólios, muitas delas a adicionar extensões privadas aos próprios processadores, não sendo ainda claro que venha a ser uma verdadeira alternativa livre.

2A IBM doou à comunidade de código aberto alguns designs de núcleos de processadores (já desactualizados ou bastante simples) para tentar fomentar o seu uso e estudo.

4Não deve ser coincidência a Alemanha ser um dos grandes produtores de automóveis.

Sobre o/a autor(a)

Licenciado e mestrando em Filosofia pela Universidade de Lisboa
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