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O leopardo na sala: a crise das regras europeias

Se as regras inscritas no PEC vão ser alteradas por serem consideradas inadequadas, que sentido tem repô-las antes da alteração estar concluída? E com base em que critérios irá a Comissão usar “toda a flexibilidade existente”?

Nos próximos meses, a Comissão Europeia vai finalmente apresentar uma proposta de alteração das regras orçamentais inscritas no Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC). A alteração já estava prometida para antes da pandemia, e é hoje mais urgente que nunca. Na semana passada, os deputados do Parlamento Europeu votaram um relatório de iniciativa que expressa a sua posição sobre esta revisão. O relatório sobre a “revisão do enquadramento legislativo macroeconómico” da União Europeia começava com uma frase auspiciosa: “para um melhor impacto na economia real da Europa, maior transparência na tomada de decisão e responsabilização democrática.” Mas vale a pena olhar com atenção para o resto do texto.

O relatório começa por aplaudir a ativação da cláusula de escape do PEC, que suspendeu a sua aplicação e permitiu aos países da União Europeia gastar o que fosse necessário na resposta à crise provocada pela pandemia. É uma posição acertada: trata-se, aliás, do pleno reconhecimento da inadequação destas regras a contextos de crise. A União Europeia tem regras económicas que só se aplicam de vez em quando.

Além disso, constata corretamente que a política monetária tem carregado a economia da Zona Euro às costas, tendo sido responsável pelo grosso da estabilização macroeconómica após a crise financeira de 2007-08 e a recessão que se seguiu no continente. Desde que iniciou os programas de compra de ativos, o Banco Central Europeu expandiu significativamente o seu balanço de forma a dar garantias aos mercados e a baixar os custos de financiamento dos países. No entanto, estas medidas têm limitações. Na ausência de outras medidas, a orientação expansionista da política monetária, sobretudo quando realizada apenas através do sistema financeiro, acentua desigualdades, uma vez que inflaciona o valor dos ativos financeiros tipicamente detidos pelas classes com mais rendimentos num contexto em que os salários pouco ou nada têm crescido.

É por isso que o relatório conclui que “a política orçamental tem de desempenhar um papel mais forte”, sobretudo tendo em conta que a maioria dos países se encontrará em incumprimento do PEC quando a cláusula for desativada em 2023.

É aqui que reside o primeiro problema: em vez de garantir que as atuais regras ficam suspensas até que sejam revistas, o Parlamento limita-se a pedir à Comissão Europeia que “forneça orientações claras de política orçamental aos Estados-membros com o objetivo de atingir posições fiscais de médio prazo prudentes”, usando “toda a flexibilidade existente”.

A posição é incompreensível: se as regras vão ser alteradas por serem consideradas inadequadas, que sentido tem repô-las antes da alteração estar concluída? E com base em que critérios irá a Comissão usar “toda a flexibilidade existente”? O mesmo relatório que exige, e bem, uma governação económica mais transparente aplaude (e até exige) uma atuação discricionária da Comissão na produção de “orientações claras de política orçamental”. Como é bom de ver, não é a Alemanha que as vai receber.

Se há elementos interessantes no diagnóstico, o texto é parco em críticas ao enquadramento legislativo, que após a última crise empurrou países como Portugal e a Grécia para programas de austeridade que se revelaram desastrosos, piorando as condições de vida e agravando substancialmente os problemas de endividamento que se propunham resolver. Basta compará-lo à posição do Conselho Orçamental Europeu, que é citada de forma altamente seletiva. Basta dizer que não há em todo o relatório uma única referência à “regra de ouro” de exclusão da despesa de investimento do cálculo do défice.

O resultado é que as propostas de alteração avançadas deixam quase tudo na mesma: o relatório sugere que, em alternativa às atuais metas de consolidação orçamental exigidas aos países mais endividados, se estabeleça uma “regra de despesa plurianual” que limite o crescimento da despesa pública nominal. Este teto poderia variar consoante a evolução de variáveis como a inflação esperada, a distância em relação ao limite de dívida pública considerado razoável e o crescimento do “produto potencial”.

Ora, o primeiro problema prende-se precisamente com a escolha das variáveis, já que o produto potencial é uma variável teórica, não-observável e cujo cálculo envolve hipóteses que quase todos os economistas reconhecem ser irrealistas. Não é por acaso que o seu cálculo está envolto em polémica e que as diferentes instituições apresentam frequentemente estimativas muito diferentes para o seu valor, o que aliás contraria a exigência expressa na posição do Conselho Orçamental Europeu (amplamente citado no relatório) e no próprio texto do relatório para que os indicadores utilizados nas regras europeias sejam “facilmente observáveis [...] de forma a assegurar a transparência”.

Por esta altura, já não há desculpa para não saber que apertar o cinto é a pior forma de responder a uma crise económica. Essa receita foi tentada na periferia europeia e os resultados foram desastrosos

O segundo problema, ainda mais relevante, é o raciocínio subjacente a esta proposta: a ideia de que os problemas de endividamento de um país se resolvem com restrições cegas às despesas do Estado. Embora haja uma referência genérica à proteção de “certas despesas promotoras de crescimento, sustentáveis e claramente definidas”, num impercetível europês, a verdade é que uma regra desta natureza limitaria consideravelmente o espaço dos governos para definir planos de investimento ou promoção de rendimentos. Mais: a definição de um teto para a despesa nominal significa que, em períodos de crise e perante o aumento da despesa associada aos estabilizadores automáticos (subsídios de desemprego e outras transferências sociais), os Estados seriam obrigados a comprimir a despesa de Iinvestimento, exatamente como aconteceu a seguir à crise financeira. Assim aconteceu em Portugal, em que o investimento público colapsou de 9500 para 2900 milhões entre 2010 e 2016, uma quebra de 70% em valores nominais.

Por esta altura, já não há desculpa para não saber que apertar o cinto é a pior forma de responder a uma crise económica. Essa receita foi tentada na periferia europeia e os resultados foram desastrosos: após a última crise, os países que levaram a cabo os programas de ajustamento (leia-se, austeridade) mais violentos foram aqueles que viram a dívida pública em percentagem do PIB aumentar mais. Ao cortar salários e pensões e restringir o investimento público num contexto de subutilização dos recursos da economia, o Estado acentua o efeito recessivo e a espiral de falências, desemprego e quebra do consumo, deteriorando as condições do país para honrar os seus compromissos. Pelo contrário, ao estimular a economia por via do investimento ou das políticas de rendimentos, o Estado pode impulsionar o crescimento e permitir que o rácio da dívida diminua de forma mais sustentável.

Sabemo-lo pelo menos desde que John Maynard Keynes e Richard Kahn desenvolveram o conceito do multiplicador, antes da publicação da Teoria Geral em 1936. A social-democracia europeia, aliás, reteve essas lições nas décadas do pós-Guerra. Esqueceu-as, mais tarde, com o nascimento da 3.ª via. E não há maneira de se lembrar. Na hora da verdade, e apesar de todas as declarações entusiásticas sobre as enormes mudanças em perspetiva, o relatório negociado entre os Socialistas e a Direita garante apenas que “algo muda para que tudo fique na mesma”. A expressão, eternizada por Giuseppe di Lampedusa n’O Leopardo, resume não apenas o que consta deste relatório, mas muito do que está a ser vendido como uma nova resposta às crises.

Artigo publicado no “Público”, em 18 de julho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputado e economista.
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