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O estafeta no asfalto
Ao regressar a casa deparo-me com um grande borborinho na rua. Carros parados, vozearia, aflição. Um estafeta da Uber jazia no chão, a mota tombada a uma curta distância de um automóvel. O homem quedava-se imóvel, com o capacete ainda na cabeça. Junto a mim ouço quem critique o sucedido pela falta de cuidados de condução dos estafetas: «São uns loucos, não respeitam nenhum sinal, andam a mil!». Lembrei-me logo do que em tempos se dizia, apressadamente, dos trabalhadores da construção civil, tão “propícios” a acidentes de trabalho.
O que então o senso comum não referia é que esses trabalhadores tinham horários de trabalho de Sol a Sol, dados os picos de procura no setor da construção, com apertadas exigências de prazo. Ou a proliferação de trabalho informal e clandestino, através de uma cadeia de subcontratações. Ou a ausência da inspeção de trabalho. Ou, ainda, uma cultura de masculinidade que negligenciava a precaução por a considerar sinal de falta de força e coragem. Nesse contexto, os acidentes naturalizavam-se como normais ou até inevitáveis.
Os estafetas também trabalham em horários diabólicos. De tão mal pagos veem-se obrigados a acelerar a sua prestação. Não têm seguros ou qualquer outro tipo de proteção, dada a ficção de serem considerados trabalhadores por conta própria, supostamente autónomos na gestão flexível do seu modo de trabalhar. Na verdade, são escravizados por um algoritmo que os obriga a carregar no acelerador de maneira que recebam mais trabalho do que os colegas. Imigrantes, na sua esmagadora maioria, sonham em acumular um pequeno pecúlio que possam transferir para a família na origem. E vivem no sonho de, após uns anos de exploração brutal, voltarem aos seus países para um recomeço com algum suporte.
O capitalismo de plataforma é o capitalismo numa das suas mais rudes metamorfoses. Ninguém representa estes trabalhadores: não têm cooperativas, comissões de trabalhadores ou sindicatos. Contudo, os mais politizados têm organizado pequenas manifestações contra as suas degradantes condições de trabalho.
No asfalto, o estafeta não se levantava. Mas logo pararam três, quatro, cinco motocicletas. Os colegas dele se abeiraram, transmitindo-lhe confiança. E ele sorriu, apesar da dor.
Artigo publicado em Gerador a 1 de dezembro de 2022
Comentários
Seja capitalismo ou
Seja capitalismo ou bolchevismo, irmãos, ora desavindos, ora alinhados na história das sociedades, têm vindo fortemente convictos sempre a autorizar-nos e até paternalmente convidar-nos ao mergulho em águas sabidamente podres tal como a avestruz com a cabeça na areia.
Será agora com as possibilidades que a IA ( inteligência artificial ) fornece, cada vez mais perto de capturar a natural, porque quase ultrapassada, iremos finalmente poder ser mais humanos embora sob as patas dos autómatos daquela?
Penso que não. E futurar tal será apenas mais um quiz para preencher ócios.
A careza da liberdade acompanhada de todas as suas primas constituem mesmo um luxo com que, recorrentemente, demonstrámos uma falta de jeito milenar, para com ela lidar. Pobrezinhos que somos.
É pois necessário preservar na luta mas desta vez com os ciborgues à frente.
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