O Estado da precariedade

porPedro Filipe Soares

03 de março 2018 - 11:39
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A precariedade laboral é um flagelo no nosso país. Os dados não enganam: a taxa de contratos precários em Portugal é das mais elevadas na União Europeia.

A rapper Capicua explica nas suas rimas como a precariedade afeta a vida dos jovens: "O salário não sobe, é precário mas ouve, não há nada menos podre e não sais de casa dos pais." Esta é uma das explicações para as alterações profundas que a crise da troika causou na idade em que os jovens se emancipam e saem de casa dos pais. Mas, o "contrato de seis meses, um ano, às vezes" é uma realidade que afeta cada vez mais gerações, já não apenas os jovens. Vidas eternamente adiadas, planos de futuro sempre reféns de um presente sem direitos nem estabilidade. O desespero destes trabalhadores é o paraíso de empresas de trabalho temporário, escravizadoras no mundo moderno.

A situação portuguesa é particularmente grave porque o próprio Estado manteve, ao longo de décadas, muitos dos seus trabalhadores e trabalhadoras em situações de precariedade. A precariedade instalou-se bem fundo das funções fundamentais do Estado. Saúde, educação, segurança social, os grandes pilares do Estado social, dependem de milhares de precários diariamente. O Estado tem dado um mau exemplo como empregador.

Após as eleições legislativas de 2015, foi erguida a bandeira do combate à precariedade por todos os partidos que compõem a atual maioria parlamentar. Contudo, esse combate está longe de ter avançado no privado, muito por culpa da paralisação que o governo imprimiu na legislação laboral. Apesar disso, no setor público a situação é um pouco diferente.

A intensa negociação do Bloco de Esquerda levou à criação de um programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na administração pública (PREVPAP). O primeiro passo foi o da identificação das situações de precariedade no Estado, na qual toda a administração pública foi instada a participar.

O retrato da precariedade no Estado mostrou os números da vergonha que PSD e CDS queriam esconder: dezenas de milhares de precários, contratados a prazo ou a falsos recibos verdes; estágios e trabalho gratuito de desempregados em programas ocupacionais; serviços totalmente dependentes de empresas de trabalho temporário ou de outsourcing. Nas autarquias, um em cada sete trabalhadores é precário, apesar de assegurar funções permanentes.

A segunda fase do PREVPAP dava sequência ao relatório e, através das comissões de avaliação bipartida (CAB, constituídas por representantes ministeriais, dos serviços e das organizações sindicais), avaliava se as funções exercidas pelos trabalhadores correspondiam a necessidades permanentes. A terceira fase é a dos procedimentos concursais para que os trabalhadores precários vejam finalmente a sua situação regularizada.

O PREVPAP devia ser um processo simples, mas está a tornar-se num calvário e ameaça destruir a legítima expectativa que criou.

Há atrasos inaceitáveis nos concursos. A lei que o Parlamento aprovou diz que os concursos seriam abertos em meados de fevereiro. Ora, o prazo já lá vai e os concursos, nem vê-los. São poucos os processos analisados pelas diversas CAB e que já tiveram as respetivas homologações. Diz, agora, o primeiro-ministro que em abril serão abertos concursos mil, numa tentativa de remendar o problema. Contudo, o atraso está a criar um buraco negro onde caem as pessoas cujos contratos a prazo estão a terminar. O resultado é que essas pessoas poderão ser atiradas para o desemprego.

Um outro problema é o boicote ao PREVPAP em várias áreas, desde o Ambiente até ao Ensino Superior. Grande parte dos reitores está a rejeitar a regularização dos precários das suas instituições: só na Universidade de Aveiro são 300 precários que a universidade rejeita regularizar. Se é incompreensível a má vontade dos reitores, ainda mais incompreensível é a posição dos representantes do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (MCTES) que votaram na CAB ao lado dos reitores. Na Águas de Portugal, os trabalhadores contratados há anos através de empresas de prestação de serviços não estão a ser reconhecidos, em contradição com a lei. As CAB não podem transformar o PREVPAP num baralho de cartas marcadas para a exclusão.

A regularização dos precários do Estado não pode ser boicotada pela própria administração pública ou posta em causa pelo governo.

Artigo publicado no “Diário de Notícias” a 1 de março de 2018

Pedro Filipe Soares
Sobre o/a autor(a)

Pedro Filipe Soares

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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