O comunismo solar como alternativa ao capitalismo zombie

porRicardo Coelho

07 de março 2015 - 23:59
PARTILHAR

A série “The Walking Dead” mostra a importância de viver numa sociedade sustentável, social e ambientalmente. Esperemos que não seja necessário termos um apocalipse zombie para caminharmos em direção ao comunismo solar.

A premissa da série “The Walking Dead”, baseada na famosa e premiada novela gráfica de Robert Kirkman, é igual a tantas outras histórias de zombies: devido a uma doença que torna pessoas em mortos-vivos que se alimentam da carne dos vivos, a sociedade como a conhecemos ruiu e um pequeno grupo de sobreviventes faz o que pode para se aguentar. Seguindo a tradição de filmes de zombies, a série é extremamente gráfica e o seu visionamento não é aconselhável para quem desmaia ao ver uma gota de sangue. O que a torna única e especial não é tanto o facto de quebrar com a tradição dos filmes de zombies de combinar terror com comédia mas antes é introdução, frequentemente subreptícia, de elementos de crítica social, a tal ponto que me atrevo a dizer que qualquer episódio pode servir como base para um debate político. O último episódio foi particularmente ilustrativo desta tendência.

Antes de mais, um aviso amigo: este texto contém revelações sobre a série. A quem ainda não a começou a ver, aconselho que a veja desde o início e volte a este texto posteriormente. Está dado o aviso.

A série que tem posto meio mundo agarrado à cadeira já nos habituou à desconstrução de estereótipos e preconceitos. Nos episódios iniciais, as divisões de género estão ainda muito vincadas (veja-se a cena em que as mulheres lavam a roupa num riacho, enquanto o violento marido de uma delas observa) e as divisões raciais espreitam de vários lados (veja-se o exemplo do detestável redneck racista Merle). À medida que a história avança, contudo, a intolerância é constantemente punida, assim como o autoritarismo. A mensagem torna-se cada vez mais clara: para sobreviver, um grupo tem de ser unido, não havendo espaço para a falta de solidariedade ou a dominação.

Repito, os elementos de crítica social são introduzidos frequentemente de forma subreptícia (uma exceção óbvia a esta regra é o destronamento do ditador paternalista conhecido como “o governador”). O resultado é a naturalização de comportamentos frequentemente condenados numa sociedade intolerante. Por exemplo, pode facilmente passar ao lado de muitos fãs o facto de o bébé do grupo (filha de Lori, que morreu durante o parto) ser carregado ao colo e cuidado por homens e que o papel de “mãe” seja atribuído a Tyreese, um homem negro corpulento que normalmente associaríamos pelo físico ao papel de durão. Não passará ao lado a cena em que um homem está preocupado com o destino do seu parceiro, receando que tenha sido apanhado pelos zombies, para depois descobrirmos que os dois homens são namorados, mas o romântico reencontro é feito com tal realismo que nada parece estranho. No mundo pós-apocalíptico da série, os únicos comportamentos inaceitáveis são os que viram humanos contra humanos.

Nada disto é inédito no domínio da fantasia e ficção científica. Hoje quando alguém pensa na série Star Trek (a série original, dos anos 60) pensa certamente nas orelhas pontiagudas do Mr. Spock ou no teletransporte operado pelo Scotty. Mas a série foi também inovadora a outros níveis. No meio da polémica sobre o apartheid em que a comunidade negra vivia nos EUA, houve um produtor que teve a ousadia de não só introduzir pessoas não brancas em papéis de destaque como também de exibir na TV o primeiro beijo inter-racial. Criar um mundo fantástico é uma forma de quebrar barreiras e isso não passou ao lado de Karl Marx, que foi buscar os seus metafóricos espectros, vampiros e monstros às obras de autores como Bram Stocker e Mary Shelley. Muitos outros exemplos modernos de cruzamento entre mensagem política e ficção existem, desde o feminismo da Buffy até ao pacifismo da Battlestar Gallactica mas voltemos ao último episódio de “The Walking Dead”.

Depois de vaguear durante anos a enfrentar todo o tipo de dificuldades, o grupo de sobreviventes encontra um refúgio na comunidade de Alexandria. Rodeada por muros impenetráveis, a localidade foi criada como uma eco-aldeia para os ricos, mas foi entretanto ocupada por sobreviventes do apocalipse zombie, que viram nela um refúgio auto-suficiente. Depois de termos conhecido a comunidade, liderada pela ex-congressista Deanna, ficamos a saber que funciona de uma forma democrática, com toda a gente a contribuir para o bem comum na medida das suas possibilidades. Depois de ter distribuído empregos pelos novos residentes, Deanna afirma: “Parece que, afinal, os comunistas ganharam”. Não sabemos ainda como vai acabar a aventura em Alexandria (seguindo a tradição da série, provavelmente acabará mal) mas a cena já serviu para mostrar a importância de democratizar o acesso a modos de vida ecológicos e combater o “eco-chic”.

Não sei se o eco-socialista Michael Löwy já viu este episódio, mas certamente ficará satisfeito de ver uma obra de ficção a mostrar o valor do “comunismo solar” que propõe como alternativa ao capitalismo morto-vivo. Se no filme “Terra dos Mortos” o grão-mestre dos filmes de zombies George Romero nos mostrou a importância de derrubar os muros que separam capitalistas de proletários, a série “The Walking Dead” dá um passo em frente e mostra a importância de viver numa sociedade sustentável, social e ambientalmente.

Esperemos que não seja necessário termos um apocalipse zombie para caminharmos em direção ao comunismo solar. A alternativa é um futuro de crescente conflitualidade, exploração e destruição ambiental. Afinal, não é preciso termos zombies a querer comer-nos para que a máxima “ecosocialismo ou morte” faça sentido. Sobretudo quando consideramos que já temos capitalistas a comer-nos todos os dias.

Ricardo Coelho
Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
Termos relacionados: