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O antirracismo no regaço

A apresentação de Cristo como um homem negro é um marco na visibilidade que a Igreja Católica dá a pessoas de grupos que sempre foram sub-representados, exibidos como subalternos, historicamente oprimidos. O que antes era exclusão e opressão, deu lugar a uma significativa inclusão.

Um Cristo negro nos braços de sua mãe, Maria, replicando a icónica obra prima de Miguel Ângelo - Pietà, Piedade em português. Foi com esta imagem que a Pontifícia Academia para a Vida, um órgão do Vaticano, tomou posição na luta contra o racismo. Ainda bem.

A simbologia deste quadro bíblico é imensa, tanto para crentes como para não crentes. Retrata o instante em que Cristo acaba de ser retirado da cruz, sem vida, e é recolhido no regaço da mãe. Um misto de sofrimento e compaixão perante um filho amparado nos braços maternos, momentos antes da preparação do corpo para o enterro, como se o colo da mãe ainda trouxesse proteção naquela circunstância.

Há frases que nos deixam sem palavras. “Nenhum pai deveria ter que enterrar um filho”, ouvi uma vez do meu avô. Engoli em seco sem conseguir articular qualquer palavra. Não haverá maior dor, diz-se, e é por isso que a representação é emocionalmente tão intensa.

Para os crentes, a Piedade mostra Maria como a mãe universal, a quem todos podem recorrer e que todos acolhe em seus braços. É uma tomada de posição ao lado de todas as vítimas, afirmação de compaixão, demonstração de amor incondicional. O poeta Miguel Torga sumariou nos seguintes versos: “Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,/ Da pedra e da tristeza, no teu canto,/ Comigo ao colo, morto e nu, gelado,/ Embrulhado nas dobras do teu manto.” A escolha da figura de um homem negro para representar Jesus Cristo é o reconhecimento dessa inclusão, dessa igualdade, dessa humanidade. As vidas negras importam.

A ideia original desta revisitação à obra de Miguel Ângelo pertence ao artista Fabio Viale, que em 2018 retratou Lucky Ehi, um menino nigeriano, deitado na mesma réplica em vez de Cristo. Ehi foi forçado a fugir da Nigéria devido à perseguição religiosa que o ameaçou. Simbolizou no sofrimento deste jovem o sofrimento da humanidade em momentos de desespero que procura o apoio num amor que vai além de diferenças sociais, religiosas, políticas ou geográficas. As vida dos refugiados importam.

A novidade da fotomontagem recentemente publicada pela Pontifícia Academia para a Vida é ser uma tripla mensagem contra o racismo e a xenofobia. No momento em que o movimento Black Lives Matter deu ao combate ao racismo uma enorme visibilidade há aqui uma tomada de posição inequívoca. Por outro lado, o momento da divulgação da imagem não é inocente: aconteceu no dia seguinte ao funeral de Willy Monteiro Duarte, um jovem de 21 anos com pais cabo-verdianos, espancado até à morte por neofascistas nos arredores de Roma - não esquecemos Giovani Rodrigues, cuja tragédia é tão similar. Por último, não consente perante a vergonha de Moria e o desastre das política migratórias da U.E.

A apresentação de Cristo como um homem negro é um marco na visibilidade que a Igreja Católica dá a pessoas de grupos que sempre foram sub-representados, exibidos como subalternos, historicamente oprimidos. O que antes era exclusão e opressão, deu lugar a uma significativa inclusão.

No entanto, rapidamente se ouviram gritos de “blasfémia”. Os setores conservadores e reacionários da Igreja Católica, com particular ênfase nos EUA, reagiram violentamente: quem ousa mudar a criação de Miguel Ângelo? “Sacrilégio, vade retro”! Na verdade, a escultura renascentista reproduz o caráter eurocêntrico do contexto em que foi criada, onde as pessoas brancas eram colocadas no topo da hierarquia social e humana, daí as feições com que Cristo é esculpido. É essa narrativa supremacista que estes setores reacionários sentem ameaçada quando Cristo é apresentado como sendo de uma comunidade racializada. A indignação não é pela liberdade artística, é pelo ataque às raízes profundas de onde emana o racismo e o ódio. Não nos enganam.

As tomadas de posição do Vaticano não reescrevem os livros de história, não apagam cruzadas ou inquisições, nem ocultam as responsabilidades da Igreja Católica na difusão do racismo ou na justificação do esclavagismo. Mas parecem indiciar que se quer escrever uma nova página, o que se saúda. E no que toca à imagem de Cristo, importante para os crentes, parecem-me sábias as palavras do padre Anselmo Borges: “há muitas possibilidades de o imaginar”.

Artigo publicado no jornal “Público” a 18 de setembro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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