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O admirável mundo da era digital

A atual pandemia acelerou a tendência do uso de tecnologias digitais para intermediar várias esferas da vida quotidiana. Cada vez mais reunimos, consumimos, comunicamos e até trabalhamos online.

No domínio das ciências económicas, vários autores referem já há algum tempo a existência de uma nova era das tecnologias de informação. Por exemplo, em 2001, Chris Freeman e Francisco Louçã consideravam a era das tecnologias de informação o quinto ciclo de Kondratiev, iniciado em 1973 e depois da era do algodão, do ferro e da energia a partir da água (primeiro ciclo), da era dos caminhos de ferro, da energia a vapor e da mecanização (segundo), da era do aço, da engenharia pesada e da eletrificação (terceiro) e da grande depressão e a era do petróleo, dos automóveis, da motorização e da produção em massa (quarto)1.

É uma realidade que muitas empresas estão a apostar nestas tecnologias e mesmo o governo português direcionou para a “transição digital” um investimento de mais de 2 milhões de euros no Plano de Recuperação e Resiliência, em linha com a estratégia da União Europeia.

Os vários impactos

Uma realidade onde as alterações já se fazem sentir diz respeito ao trabalho. Para além do aumento do teletrabalho, as plataformas digitais como a Uber ou a Glovo, onde o conceito de “flexibilidade laboral” ganha novos contornos2, e as possibilidades de automatização de atividades normalmente realizadas por trabalhadores despertam a atenção de vários sindicatos e ativistas laborais.

Os patrões veem nas tecnologias de informação uma forma de aumentar o seu controlo sobre a força de trabalho, algo já verificado, por exemplo, na adoção da máquina a vapor em vez do uso da água como força motriz3.

Nas empresas verificam-se várias tendências, como a expansão para novos mercados por parte das mais poderosas (por exemplo Amazon e Apple), a comercialização de produtos e serviços novos e o conhecimento mais aprofundado dos seus consumidores, o que permite obter “vantagens competitivas” em relação a outras empresas com a mesma oferta, mas não tão avançadas a nível digital. Se o aparecimento de poderes quase monopolistas são uma realidade, o crescimento económico a nível macro parece levantar algumas dúvidas4.

Os serviços públicos estão igualmente a ser alvo de mudanças, confirmadas pela existência de um ministério da “modernização de estado e da administração pública”. Procura-se melhorar os processos e aumentar o contacto online com os cidadãos. Tecnologias como a “Internet das Coisas” estão já a ser utilizadas um pouco por todo o mundo em diferentes serviços, como os transportes públicos, a gestão de tráfego rodoviário e a monitorização da qualidade do ar, levando ao que tem sido chamado de Smart Cities.

As diferentes inovações trazidas pela transição digital para o setor público podem trazer benefícios, mas existem várias questões importantes em aberto: qual o impacto nos funcionários públicos e na sua forma de trabalhar? Conseguirá manter-se a universalidade dos serviços enquanto é feita a sua transição para o online? Quem implementa e gere os sistemas de informação, o estado ou empresas consultoras? No caso de serem as empresas, poderão estas aceder e analisar os dados?

Os recentes casos de partilha de dados por parte de entidades públicas ajudam a ilustrar as dúvidas em relação à privacidade, que são várias. Quem pode aceder à informação sobre os cidadãos? Se consideramos que o estado pode recolher e analisar esta informação, importa pensar sobre os fins desta utilização.

Michel Foucault percebeu a relação entre poder e saber e a importância da estatística (que deriva da palavra estado) para compreender a população. O principal objetivo do uso das “tecnologias de governo” seria conduzir os cidadãos para estes se tornarem mais saudáveis, logo mais produtivos e consumidores5.

É certo que o RGPD [regulamento geral sobre proteção de dados] ajuda a enquadrar a nível legal algumas situações de uso abusivo dos dados pessoais, mas será suficiente? Será aplicado sempre na prática?

Outra área onde se faz já sentir um forte impacto é o jornalismo, mais especificamente no trabalho dos jornalistas, no modelo de negócio e na qualidade do jornalismo. No livro recente chamado “Os três D dos Media: Desigualdade, Desprofissionalização e Desinformação” é analisada, entre outras vertentes, a imprensa de plataforma. Segundo J. L. Garcia e S. Meireles Graça, “os media tradicionais estão hoje sujeitos à força das grandes plataformas e do seu campo de poder” exemplificando que “em 2019 a dependência de plataformas como a Google, Facebook e Twitter representavam juntas mais de 85% do tráfego dos principais sites de notícias online” nos EUA6.

Analisar o estado do jornalismo implica analisar a própria democracia, porque para além da imprensa, a comunicação política está a ficar cada vez mais dependente das redes sociais, que por sua vez têm informação privilegiada relativamente à interação dos cidadãos com estes conteúdos. Importa igualmente perceber se os partidos com mais recursos financeiros terão maior capacidade para cimentar a sua presença online e assim fazer passar a sua mensagem. E se os discursos dos diferentes campos políticos irão cair na tentação de procurar “gostos” e “partilhas”.

O mandato de Trump na presidência dos EUA foi marcado pela sua presença no Twitter, mas também na disputa geopolítica com a China, nomeadamente pela corrida para a implementação do 5G, que irá aumentar bastante a capacidade de transmissão e tratamento de dados. Joe Biden mantém esta estratégia, enquanto a União Europeia quer juntar-se a esta corrida pela inovação digital.

Não podemos esquecer que maior digitalização significa necessidade de mais utilização de energia elétrica, o que pode atrasar a luta contra as alterações climáticas, caso a energia não tenha origem em fontes limpas.

O que fazer?

A esquerda, envolvendo sindicalistas, ativistas e investigadores, precisa de estar atenta a estas transformações. Sempre que possível deve-se antecipar mudanças no sentido de impedir que a transição digital signifique um reforço do lucro e do poder das elites.

As camadas mais frágeis da população, nomeadamente idosos e migrantes, não podem ficar à parte na prestação de nenhum serviço público nem em nenhuma decisão sobre o seu futuro.

Os trabalhadores precisam de reforçar os seus direitos e de aumentar os seus rendimentos, num contexto em que as empresas beneficiam de várias formas com a adoção de tecnologias de informação.

Finalmente, deve-se tentar perceber como pode a inovação digital servir o interesse comum.

Notas:

1 Freeman, C. e Louçã, F. (2001), As Time Goes By: From the Industrial Revolutions to the Information Revolution, Oxford University Press, Oxford, Oxford University Press

2 Soeiro, J. (2021), Plataformas digitais e o patrão algoritmo: o que vai fazer o PS?, Esquerda.net. Disponível em https://www.esquerda.net/opiniao/plataformas-digitais-e-o-patrao-algoritmo-o-que-vai-fazer-o-ps/75226

3 Teles, N. (2017), “Estagnação e Financeirização”, Economia com Todos, Lisboa, Relógio D’Água

4 Abreu, A. (2017), “Histórias do Nosso Futuro”, Economia com Todos, Lisboa, Relógio D’Água

5 Foucault, M. (1986), Omnes et singulatim: Vers une critique de la raison politique, Le Débat 1986/4; Foucault, M. (1976), Histoire de la Sexualité I: La volonté de Savoir, Éditions Gallimard

6 Garcia, J. L., Meireles Graça, S. (2021), “O Capitalismo de Plataforma e o Jornalismo sob Ameaça da Tecno-Mercantilização da Informação (Reloaded)”, Os Três D Dos Media: Desigualdade, Desprofissionalização e Desinformação, Edições Outro Modo

Sobre o/a autor(a)

Ativista. Mestrando em Economia e Políticas Públicas
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