Nem 25.762 nem 58.993, governos e municípios andam a enganar as pessoas sem casa!

porJosé Castro

28 de junho 2025 - 21:05
PARTILHAR

A falta de habitação digna para centenas de milhares de pessoas não é de agora. Mas nos últimos anos a situação habitacional teve um brutal agravamento. De 2013 até 2023 os preços da habitação em Portugal cresceram 83% em termos reais.

No programa do governo PSD/CDS voltam a ouvir-se promessas de responder com quase 60.000 casas a quem vive em situação habitacional indigna. Antes, tinha sido o governo PS a anunciar quase 26.000 casas para famílias a necessitar de realojamento. Andam a enganar o país e as pessoas sem casa.

A falta de habitação digna para centenas de milhares de pessoas não é de agora. Mas nos últimos anos a situação habitacional teve um brutal agravamento. O relatório da riqueza mundial (The Wealth Report) refere que 40% do investimento privado mundial em 2022 foi orientado para projetos imobiliários, com o objetivo de valorizar o capital. De 2013 até 2023 os preços da habitação em Portugal cresceram 83% em termos reais (Banco de Portugal - Revista de Estudos Económicos, Vol. X, nº 4, p.79). Esta financeirização dos imóveis, a aquisição em Lisboa e Porto de mais de 10.000 prédios pelos detentores de “vistos Gold” e os benefícios fiscais em IRC, IMT e IMI atribuídos às sociedades que investem em imobiliário subtraíram milhares de edifícios ao seu uso mais relevante, a habitação. Apenas na área de reabilitação urbana (ARU) de Lisboa foram compradas por residentes não habituais quase 1.700 casas em 2022 e 1.845 em 2021. O valor sob gestão dos 265 fundos imobiliários existentes no país é superior a 14 mil milhões de euros (5% do PIB) inRelatório sobre benefícios fiscais direcionados aos organismos de investimento imobiliário”, Tribunal de Contas, março de 2025. E assim, quase metade dos inquilinos na Área Metropolitana de Lisboa é forçado a gastar mais de 50% do seu salário no arrendamento. No Porto a situação é também dramática, mais de 1.100 famílias aguardam há anos a atribuição dum alojamento social.

Há 9 anos, para começar a responder à gravíssima situação habitacional o parlamento deu um importante passo legislativo para uma nova política de habitação. Em julho de 2016 o Bloco de Esquerda apresentou o projeto de Resolução nº 427/XIII/1ª que recomendava ao governo “medidas de atualização do programa especial de realojamento (PER) e o incremento da oferta pública de habitação social”. Seguiram-se em dezembro de 2016 os projetos de Resolução nº 597/XIII/2ª do CDS/PP e 599/XIII/2ª do PSD e em janeiro de 2017 o projeto de Resolução nº 600/XIII/2ª do PCP todos com a mesma finalidade. Da sua junção resultou a Recomendação da Assembleia da República nº 48/2017 ao governo para que fosse efetuado em articulação com os municípios o levantamento, a nível nacional, das necessidades habitacionais e a elaboração de um novo programa nacional de realojamento.

Assim foi. Ainda em 2017, no Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional (LNNRH) efetuado pelas câmaras municipais, 120 não indicaram qualquer situação de indignidade habitacional. Mas 187 municípios identificaram 25.762 agregados familiares a necessitarem de realojamento. Em maio de 2018 foi publicada a Resolução do Conselho de Ministros nº 50-A que criou a Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH) que estabeleceu duas importantes metas quantitativas: aumentar o peso da habitação pública de 2% para 5% (de 120.000 para 300.000 casas, um acréscimo de 180.000 fogos) e baixar a taxa de sobrecarga de despesas com habitação no regime de arrendamento de 35% para 27%. E para promover soluções habitacionais para pessoas que viviam em condições habitacionais indignas e cuja situação de carência financeira não lhes permitia aceder a uma habitação adequada foi criado o 1º Direito (DL nº 37/2018).

Dotado do maior pacote financeiro de sempre para habitação pública (quase 2 mil milhões de euros), o 1º Direito implicou a elaboração duma Estratégia Local de Habitação (ELH) em que, para responder às necessidades de realojamento, cada município podia escolher as suas soluções entre diversas modalidades: arrendamento de habitações para subarrendamento, reabilitação de frações ou prédios habitacionais, construção de prédios ou empreendimentos habitacionais, aquisição de frações ou prédios para habitação ou aquisição de terrenos destinados à construção de habitações.

Revelando uma enorme insensibilidade sobre a situação habitacional no seu território, municípios como Barreiro, Feira, Loures, Moita, Montijo, Odivelas, Palmela, Portimão, Póvoa de Varzim, S. Tirso, Seixal ou V. N. de Gaia entre outros, entregaram a consultores privados a elaboração das suas ELH. Não mobilizaram a experiência dos seus serviços municipais, desprezaram o apoio técnico que poderia ser prestado por instituições do ensino superior público. Resultado: atrasaram em vários anos a aprovação duma ELH.

E perante o financiamento de mais de 1,6 mil milhões de euros a fundo perdido (cobrindo 100% dos gastos), que respostas habitacionais foram escolhidas pelos municípios?

Mais de 60% das soluções foram para obras de conservação/reparação de fogos públicos já ocupados, e somente cerca de 30% apontaram para o aumento do número de alojamentos públicos a disponibilizar a quem não tem casa, através da aquisição e construção de novos fogos.

Tais escolhas, assentes no preconceito contra a habitação social e na subserviência aos promotores imobiliários, foram desastrosas para as dezenas de milhar de famílias a necessitar de realojamento, para os milhares de jovens que precisam urgentemente duma casa com renda compatível com os seus salários, para as pessoas com mobilidade reduzida, para as pessoas sem-abrigo, para as vítimas de violência doméstica que necessitam de refúgio, para todas e todos a quem o 1º Direito se destinou. A título de exemplo, o município de Setúbal propõe-se ampliar o parque habitacional municipal em apenas 573 novos fogos apesar de existirem mais de 1.300 famílias em situação de grande vulnerabilidade habitacional, o município da Amadora prevê a construção de apenas 222 novos fogos, apesar dos 645 pedidos de habitação em 2020 sem resposta. Em Lisboa, após a aumento em 2.334 fogos, o parque habitacional municipal não ultrapassará os 9% de todos os alojamentos no concelho.

Até um estudo do IHRU assume que se forem concretizados todos os acordos de colaboração e de financiamento celebrados no âmbito do 1º Direito, apenas em 6 municípios haverá um parque habitacional público superior a 5%. Em 44 municípios o número de alojamentos públicos será entre 2% e 5% do total de fogos existentes no seu território. E 258 municípios (84% dos 308 existentes) continuarão a ter menos de 2% de habitação pública (Sobre o acesso a uma habitação condigna - pág. 52-nota 180).  No conjunto do país, o parque habitacional público, após ter sido disponibilizado (e desbaratado) o maior volume de financiamento de sempre, passará de 2% para cerca de 2,6% (de 120.000 fogos para menos de 150.000 fogos).

A habitação social, aquela que é disponibilizada com rendas abaixo do mercado e com regras específicas de atribuição fora do mercado conforme a definição da Divisão de Política Social da OCDE, continua a ser a única medida política verdadeiramente social em matéria de alojamento. Porque permite sair da lógica da habitação-mercadoria, evitar a discriminação no alojamento, assegurar a justiça social e o direito à cidade. Apesar das políticas neoliberais defenderem o desmantelamento do alojamento social para garantir lucros de milhões de euros à oferta imobiliária privada, inúmeras cidades europeias têm ainda hoje uma proporção muito significativa de habitação social no conjunto do seu parque habitacional: Roterdão tem 44% de habitação social, Haia tem 31%, Linz tem 54%, Viena tem 43%, Manchester tem 30%, Amesterdão tem 42% e Copenhague tem 20% de habitação social. E mais de 2.150 municípios franceses, na sequência da lei SRU aprovada no ano 2000, têm pelo menos 20% de habitação social no conjunto de todos os alojamentos.

Com os anúncios dos decisores políticos, muitos jovens que pretendem fazer a sua vida fora de casa dos pais e dezenas de milhar de famílias inscritas nos municípios em busca duma habitação digna, ganharam alguma esperança. Mas essa expectativa não se vai concretizar. Foram enganados, continuam a ser enganados pelos governos e pelos municípios. Na questão tão dramática da habitação está-se perante um dos maiores embustes da política nacional.

Nem 25.762 nem 58.993 novas casas, talvez se chegue a 15.000 novos fogos, uma gota de água num oceano de carências habitacionais. O país continuará sem atingir 5% de habitação pública. Desprezo por quem não tem uma habitação digna, favorecimento da promoção imobiliária privada, mais um exemplo de violência social.

Todas e todos nas manifestações de 28 e 29 de junho por CASAS PARA TODA A GENTE.

José Castro
Sobre o/a autor(a)

José Castro

Jurista, pós-graduado em Planeamento Urbano e Regional
Termos relacionados: