Na famosa série “Scooby Doo”, um grupo de adolescentes desmascara sucessivamente vigaristas que se fazem passar por fantasmas para intimidar outras pessoas. Quando são apanhados, os vigaristas confessam o seu plano maquiavélico e acabam sempre com um: “Eu teria conseguido se não fossem aqueles miúdos intrometidos”. A mesma frase poderia ser dita hoje pelos austeritários que usaram um estudo de Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart como um trunfo teórico.
O jogo de sombras começa em 2010, quando Rogoff e Reinhart publicaram um artigo na American Economic Review, uma das revistas de economia mais importantes do mundo e um bastião da ortodoxia económica1. O artigo apresenta dados empíricos relativos à dívida pública, à inflação e ao crescimento para países desenvolvidos e em desenvolvimento, com o fim de procurar padrões para a relação entre estas variáveis. A conclusão central é a de que existe uma correspondência entre níveis elevados de dívida pública, acima de 90% do PIB, e baixas taxas de crescimento do PIB.
Já um ano antes, as economistas da Universidade de Harvard, haviam publicado um livro no qual analisavam a evolução da dívida pública nos últimos oito séculos, concluindo que as crises financeiras são um episódio recorrente das economias capitalistas2. O estudo publicado veio dar-lhes um ainda maior protagonismo nos debates sobre a chamada crise das dívidas soberanas, que não é mais do que o outro lado da crise financeira iniciada em 2008. A expressão “Rogoff e Reinhart” tornou-se um código para designar a base científica da austeridade, a prova final de que implementar políticas austeritárias para reduzir a dívida pública é um imperativo nos tempos que correm. Três anos depois, contudo, tudo muda, quando entram em cena “miúdos intrometidos”.
O primeiro é Thomas Herndon, estudante de economia na Universidade de Massachusetts Amherst. No decurso de um trabalho, Herndon tentou replicar os resultados de Rogoff e Reinhart, mas, apesar da insistência, não foi capaz. Pediu então ajuda aos seus professores, que também não conseguiram replicar os resultados. Pensando estar errado em algum aspeto, enviou um email a Rogoff e Reinhart, pedindo os dados originais, que foram posteriormente enviados numa folha de cálculo de Excel. O estudante ficou abismado ao ver que encontrou vários erros nos cálculos.
Num artigo publicado pela sua universidade, em conjunto com professores, Herndon descreve como erros de codificação, uso seletivo de dados e enviesamento nas ponderações dadas aos dados resulta em conclusões erradas3. Corrigindo os erros encontrados, descobrimos que a média de crescimento económico para os países com uma dívida pública superior a 90% do PIB é de 2.2% e não de -0.1%, como estimado inicialmente. Talvez mais importante ainda, não existe uma relação estável entre dívida pública e crescimento do PIB, ao longo do tempo e dos países analisados, pelo que não é correto dizer que existe uma correlação entre estas duas variáveis.
A polémica extravasou o mundo académico e entrou na comunicação social, obrigando Rogoff e Reinhart a escrever uma defesa do seu trabalho no New York Times4. Nessa altura, entram em cena mais “miúdos intrometidos”. Matthew Berg e Brian Hartley, estudantes da Universidade de Missouri-Kansas City, publicam um artigo em que mostram como os resultados de Rogoff e Reinhart foram influenciados pela introdução de valores atípicos, relativos ao Japão5. Excluindo este país, que tem registado um decréscimo significativo no crescimento económico e um enorme aumento da dívida pública, não é possível encontrar uma relação entre dívida pública e crescimento usando os dados corrigidos por Herndon.
Para ser justo, há que realçar que Rogoff e Reinhart se limitam a assinalar uma associação entre dívida pública e crescimento, não se atrevendo a retirar daí uma relação de causalidade. Ou seja, a ideia de que uma dívida pública elevada prejudica o crescimento, transmitida por austeritários como o Comissário Europeu para a Economia, Olli Rehn, não se encontra no artigo. Mais importante ainda, Rogoff e Reinhart reconhecem no seu livro que um país apenas pode sair de uma recessão associada a um agravamento da dívida pública com uma renegociação da dívida e o seu anulamento parcial. As economistas, contudo, nunca se distanciaram publicamente das interpretações que austeritários fizeram do seu trabalho, provavelmente por estarem de acordo com as políticas de austeridade.
Uma vez retirada a máscara ao fantasma da austeridade, sobra apenas uma União Europeia entregue a teorias económicas invalidadas pela prática. O ataque aos salários, às pensões, ao emprego, aos direitos sociais, aos serviços públicos, ao ambiente e à democracia é feito em nome da redução da dívida mas a dívida aumenta. A recessão é apresentada como resultado da acumulação excessiva de dívida pública mas as estatísticas mostram antes que a dívida aumentou por causa de uma recessão causada pela especulação nos bancos, nas bolsas e no setor imobiliário. O agravamento da recessão é apresentado como um episódio necessário para purgar a economia de alguns vícios, para que possa prosperar num futuro próximo, mas esse futuro nunca chega.
À medida que o tempo passa, cada vez menos gente acredita nestas mentiras e cada vez mais gente ousa pensar numa economia ao serviço das pessoas. Felizmente, há economistas que estão do seu lado.
1 Artigo completo disponível em http://scholar.harvard.edu/files/rogoff/files/growth_in_time_debt_aer.pdf
2 “This Time Is Different
Eight Centuries of Financial Folly”, em http://www.betterworldbooks.com/book-id-0691142165.aspx
3 Artigo completo disponível em http://www.peri.umass.edu/236/hash/31e2ff374b6377b2ddec04deaa6388b1/publication/566/
