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Múcio Monteiro e a traiçoeira tentação conciliadora

Especula-se que o político do PTB [do Brasil] será o ministro da Defesa, com aval dos generais. Seria contratar a calmaria no curto prazo e receber tempestades no médio. Lula poderia inspirar-se em Roosevelt, e tomar as decisões difíceis no início do governo.

A mídia noticiou nos últimos dois dias de que Lula teria hesitado diante de ameaças do Alto Comando das Forças Armadas na nomeação do futuro Ministro da Defesa. Os fardados teriam ganho de presente a prerrogativa de indicar o titular da área. O cargo de Ministro é político. A escolha cabe exclusivamente ao Presidente, que exerce também o Comando Supremo das Forças Armadas. Não é prerrogativa da corporação.

O nome surgido nos meios de comunicação – e que logo tratou de alardear o feito – é o de José Múcio Monteiro, membro de tradicional clã pernambucano, filiado ao PTB (de Roberto Jeferson e Padre Kelmon), ex-presidente do TCU [Tribunal de Contas do Brasil], ex-ministro de relações institucionais do governo Lula II e ex-deputado federal por cinco mandatos. Suas origens são a antiga Arena, partido de apoio à ditadura militar.

Múcio praticamente se autonomeou, após bolir com granadeiros e buscar o aval da coligação liderada pelo PT. Ato contínuo, foi elogiado pelo general Hamilton Mourão: “Um nome positivo para o cargo”. No final da tarde de quinta (29), o colunista do UOL, Jamil Chade, escreveu: “Nome do Ministro da Defesa não está escolhido, e Jobim aguarda ligação de Lula”. Nelson Jobim, ex- deputado federal, ex-presidente do STF e ex-Ministro da Defesa de Lula parece ter também se oferecido para a função. O ex-presidente afirma que nomes só serão divulgados após sua diplomação, prevista para o próximo dia 12.

Os lobbies estão no ar. Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, “Lula se reuniu com Múcio ontem, 28, e indicou que vai convidá-lo para chefiar a pasta da Defesa a partir de 2023”. Com isso, o pretendido grupo de transição da área não será constituído, numa exceção em toda a montagem da próxima administração.

Desconhecem-se os termos das tratativas. No entanto, o histórico de arranjos e conciliações pelo alto na História brasileira forma uma sucessão de tragédias anunciadas. A imposição da amnistia recíproca a militantes de esquerda e torturadores, em 1979 na vigência da ditadura, resultou na impunidade do atentado do Riocentro dois anos depois e na incubação da extrema-direita no meio militar. Esta reapareceu, quarenta anos depois, encarnada no bolsonarismo.

O discurso negacionista dessa turma em relação à ditadura e às barbaridades cometidas entre 1964-85 resultou na não responsabilização de criminosos fardados, cujos sucessores se sentiram fortalecidos para voltar a brandir o discurso da eterna tutela sobre o poder civil, embalados nas ambiguidades do caput do artigo 142 da Constituição. Curiosamente, em versões impressas da Carta, ele soma quatro linhas (!).

É bem possível que por trás do comportamento do presidente eleito no caso de Múcio estejam promessas de pacificação das relações entre militares e o novo poder civil, em troca do esvaziamento das manifestações golpistas nas portas de quartéis. Se for isso, trata-se de derrota anunciada, sem disputa e sem pacificação alguma. Estará contratada a repetição da história de 1979 como farsa.

Jobim não é o nome predileto das forças e seria mais próximo a uma solução intermediária, com mais trânsito entre a frente vitoriosa nas urnas.

O novo governo tem pelo menos três grandes focos de tensão conservadora para que nada mude, com a impressão de que tudo mudou.

O primeiro é formado pelas vivandeiras da Faria Lima e do mercado financeiro, a propagar que o fim do teto de gastos equivalerá às sete pragas do Egito somadas ao Dia do Juízo Final. Ou seja, o mercado continuará em sua chantagem para que o orçamento público tenha como sócio preferencial o poder da grana. Acatar a patranha equivale a realizar novo estelionato eleitoral com as expectativas populares.

O segundo envolve as vivandeiras do Congresso. A chantagem aqui é forçar o governo a votar anualmente uma PEC sobre o montante de dinheiro extrateto a ser liberado de acordo com o mercado persa comandado pelo centrão e pelas bancadas da direita parlamentar.

E o terceiro é o jogo pesado das paquitas da ditadura homiziadas na cúpula das Forças Armadas.

Lula tem a chance de ouro de virar a esquina das conciliações pelo alto e de romper com uma desastrosa tradição brasileira, a de passar o pano para crimes dos de cima. A desmoralização e o escracho que Bolsonaro impôs ao mundo militar, com suas boquinhas nos planos de carreira, sinecuras na Esplanada, doses industriais de viagra, gel lubrificante, próteses penianas, inépcia logística no trato da pandemia e arreganhos golpistas levou os coturnos a baixos níveis popularidade inéditos na República. Este é o momento rooseveltiano dos cem dias após a vitória, no qual o novo poder tem força suficiente para impor seus termos a um oponente cuja maior força reside em parlapatices costumeiras. Não é interessante comprar ameaças pelo valor de face, quando podem valer menos no mercado das lorotas públicas.

Deixar a caserna exercer autogestão onde ela não deve se meter – a esfera política – significa contratar a calmaria no curto prazo e receber tempestades no médio. A arrogância fardada só recuará se a autoridade civil exercer plenamente o mandato conferido pelo eleitorado. Não há mediações aqui. Em caso de recuo, o poder armado avançará sobre o poder cidadão.

Artigo de Gilberto Maringoni, publicado em Outras Palavras, a 30 de novembro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor de Relações Internacionais, militante do PSOL
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