Está aqui

Lutar pela universidade pública em 2010

Um tremor de justiça social e de igualdade é necessário produzir para que as coisas mudem. E isso faz-se ensaiando e experimentando a democracia.

Estudar na universidade pública em 2010 significa ter muito pouco tempo para algo mais que ir às aulas (cada vez mais de presença obrigatória) e cumprir a avalanche de trabalhos que a pedagogia bolonhesa patrocina, numa universidade que permite menos o encontro, a participação ou o pensamento crítico do que já permitiu. Estudar na universidade em 2010 implica a sorte de se dispor dos meios de vida para pagar 1000€ de propinas e ainda conseguir sobreviver. Ser bolseiro em 2010 implica não se ter propinas em atraso (que permita a inscrição e, consequentemente, a bolsa do ano seguinte, que quase sempre não vai além do valor da propina), implica a não pertença a um agregado familiar de classe média endividada (os critérios de atribuição olham para os rendimento bruto que não tem em conta o serviço de dívida das famílias). Para alguns colegas meus, estudar na universidade em 2010 significa não comer o suficiente por dia.

A graça da banca já não nos surge somente para suportar um projecto de vida, um investimento, uma casa mas antes para recuperarmos um direito que era nosso e nos foi penhorado sem nossa autorização ou vontade – apesar da maioria não ter a percepção, já andávamos todos na escola quando foi anunciado pela primeira vez que um curso superior tinha deixado de ser um direito para todos. E foram repetindo sempre até que, num país com 2 milhões de pobres, a propina barrasse já um 1/3 dos estudantes mais pobres do acesso à universidade1.

Lutar pela universidade pública em 2010 impõe que não nos deixemos intimidar pelo novelo burocrático e legislativo nem pelos paliativos engendrados pelo ministro mas que tantas vezes distraem do que é importante. Um contrato de confiança de 100 milhões de euros que foi praticamente na sua totalidade para o fundo de empréstimos do governo não soluciona o problema das propinas a ninguém nem torna a universidade mais pública, apenas endivida toda uma geração de estudantes. Prometer que as bolsas serão entregues no prazo de dois meses após a candidatura mas congelar o processo de avaliação das candidaturas para ganhar tempo não emitindo o despacho com as normas técnicas que permitem aos serviços de acção social começarem a trabalhar não resolve o problema de muitos estudantes deslocados (e não só!) que necessitam de pagar alojamento, alimentação, material e às vezes a primeira prestação da propina para frequentarem as aulas.

Mas lutar pela universidade pública em 2010 implica lutar com muitos estudantes que, em larga medida, desconhecem como se conquistam os direitos ou se afronta o poder. Esta geração que nasceu em 1990, apesar de lhes ter sido dito que o curso era o caminho natural da sua instrução, não viveu sequer para recordar o sucesso das últimas grandes manifestações estudantis que responsabilizou o poder pelas suas escolhas políticas e que fizeram recuar a propina.

Embora o desconhecimento da informação sobre a realidade e sobre a história seja a argamassa da "inevitabilidade" liberal para a sociedade, não nos basta espalhar por toda a academia que em catorze países da UE não se pagam propinas ou que até 1996 elas não existiram no nosso país. É importante, uma vez que a luta política pela universidade pública far-se-á pela luta das ideias. Mas não só.

O edifício ideológico liberal assenta confortável na desinformação que limita o esclarecimento mas também, em grande medida, nas pré-concepções sobre onde começa e acaba a democracia, como se constroem os nossos direitos e sobre o papel dos estudantes e das suas possibilidades. Um tremor de justiça social e de igualdade é necessário produzir para que as coisas mudem. E isso faz-se ensaiando e experimentando a democracia. Como aliás os estudantes têm vindo a fazer no ano que passou, no acampamento à porta do politécnico de Tomar por melhores condições, na manifestação dos estudantes da ESMAE até à porta do IPP por financiamento, na ocupação de Belas Artes, em Novembro na manif por mais acção social e por menos propinas, na recepção alternativa dos governantes na FCSH em Lisboa, na interrupção da sessão solene no Politécnico do Porto, onde os estudantes afirmaram que não há cerimónias enquanto não houver igualdade nem justiça.

Nesta última acção, o ministro recebeu a medalha de chouriço por sermos os que na zona euro mais temos de pagar pela educação. Talvez essa medalha inspire próximas lutas. Na verdade, já está a inspirar.


Sobre o/a autor(a)

Dirigente associativo e dirigente nacional do Bloco
(...)