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Laicidade e insígnias de Estado: o pecado de Fernando Medina
I - A laicidade é um princípio que impõe a separação do Estado de confissões religiosas e que preconiza a neutralidade do Estado em matéria religiosa. A luta pela consagração da laicidade vem de há séculos, sendo motivada pela costumeira prática de haver “religião de Estado”, frequentemente associada a uma comunhão de meios e financiamentos entre Estado e Igreja.
Numa primeira fase, lutou-se pela liberdade de consciência e de culto. Numa segunda fase, aprofundou-se o princípio da laicidade com a separação do Estado das confissões religiosas. Hoje, fruto da liberdade religiosa, das migrações e do multiculturalismo, o grande desafio é a diversidade cultural e religiosa, as suas consequências na sociedade e a forma como o Estado há-de lidar com o fenómeno religioso.
À boleia do respeito pela diversidade e do multiculturalismo, a rígida separação entre o poder político e o fenómeno religioso tem dado lugar a um ecumenismo de Estado, com os detentores de cargos políticos a marcar presença, nessa qualidade, em manifestações de culto religioso e não regateando apoios formais ou materiais a práticas religiosas, ainda que sob a capa de uma aparente diversidade e igualdade – desde logo aparente porque não leva em linha de conta ateus e agnósticos.
Para além do que já vai dito, a invocação da fé ou religião em situações do domínio político, até mesmo para manifestar a sua fé em que venha a “chover”, como foi o caso de Assunção Cristas enquanto Ministra da Agricultura, ou como foi o caso de diversos deputados evangélicos durante a votação do impeachment de Dilma Roussef, comporta a final injustiça e desigualdade.
A meu ver, e no respeito profundo pela prática religiosa individual - cuja aceitação e respeito deve ser merecedora da protecção de todas e de todos – há que preservar o princípio da laicidade, deixando ao domínio da religião e da crença as matérias que lhe digam respeito. Ora, em posições de princípio, qualquer abertura ou excepção abre uma “caixa de Pandora” que leva, a prazo, ao esvaziamento do total de tais posições de princípio.
Entendo por isso que é preciso ser-se cauteloso na observância do princípio da laicidade no âmbito do exercício do mandato em órgãos de Estado. Esta observância implica um distanciamento no exercício de funções da prática religiosa, que constitui hoje parte inequívoca da esfera privada.
II - O dito ecumenismo de Estado tem vindo paulatinamente a legitimar uma maior promiscuidade entre Estado e confissões religiosas, ou melhor dizendo entre a esfera pública e a esfera privada, patente, por exemplo:
i) Na participação em práticas religiosas de diversas confissões e nos apoios materiais dados a cada uma delas, seja no financiamento a confissões minoritárias – que necessariamente virá a legitimar o financiamento a confissões com maior representatividade;
ii) No apoio a actividades de cariz de apoio social promovidas por confissões religiosas, cujo cunho se fará sentir junto dos que são apoiados, independentemente da sua religião;
iii) Na prática de isenções fiscais generosas às confissões religiosas em função de uma alegada utilidade pública;
Esta temática merece especial relevo na actividade das autarquias locais, muito tentadas a este tipo de apoios, porque antropologicamente muito ligadas ao fenómeno religioso e mais vulnerável a grupos de interesse locais.
É certo que o património religioso pode até merecer financiamento público, mas isto na sua estrita dimensão de património cultural classificado. Neste caso estamos perante um apoio à preservação do património cultural e não à prática religiosa.
É igualmente certo que o Direito Internacional Público pode até exigir a solenidade e presença do Estado e dos seus representantes, quando estejam em causa relações diplomáticas, como é o caso da Santa Sé ou da Ordem de Malta ou em termos mais impróprios, a figura do Dalai Lama. Mas ainda assim, deve restringir-se tal tratamento estritamente num plano diplomático e de respeito pela legalidade do Direito Internacional Público, aliás já muito generoso junto de nós para a Igreja Católica, mercê da concordata.
III - Tudo isto vem a propósito da participação de Fernando Medina, acompanhado de Duarte Cordeiro, seu Vice-Presidente e de Gonçalves Pereira, vereador eleito pelo CDS, bem como de Miguel Coelho, Presidente da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e Carla Madeira, Presidente da Junta de Freguesia da Misericórdia na Procissão do Senhor dos Passos da Graça neste Domingo (em nome da verdade, deverei dizer que no ano passado por lá vi autarcas do PCP decorados com insígnias de Vereador da Câmara Municipal de Lisboa, confessando que este ano não os vi).
Os autarcas em causa envergavam as insígnias da Câmara Municipal de Lisboa, no caso do Presidente da Câmara Municipal e Vereadores, indo integrados na referida Procissão em lugar protocolar.
O Município de Lisboa e os titulares dos seus órgãos devem abster-se deste tipo de participação na qualidade de autarcas em funções. Isto sem embargo de os seus titulares o poderem fazer, de forma sincera e empenhada, a título individual, na sua eventual dimensão de crentes (como aliás suponho que o tenham feito os cidadãos Marcelo Rebelo de Sousa e Assunção Cristas, católicos notórios, pois quero acreditar que ninguém aqui participou com fins eleitoralistas).
Aponto pois um pecado a Fernando Medina - e aos demais autarcas que participaram nessa qualidade, nesta e noutras procissões - um pecado contra a laicidade e contra a igualdade. Mas sobretudo um pecado contra os lisboetas, especialmente aos que foram involuntariamente representados em tão piedoso acto. Que se lembre Medina que ainda há em Lisboa quem exija respeito pela laicidade.
Comentários
Bom dia
Bom dia
Em observação ao seu artigo não gostaria de lhe deixar este comentário pois embora não nomeado fui directamente visado.
A opção da paricipação na procissão do Senhor dos Passos enquanto Vereador deriva do respeito pelas tradições religiosas e culturais da cidade, diga-se de passagem numa cidade de maioria católica que tem o nossa respeito.
A laicidade não implica em nenhum momento a hostilização e o anti-clericalismos. Donde a presença dos Vereadores do PCP não indica adesão a nenhuma religião.
Se é verdade que não houve este ano a sua presença não é por nenhuma mudança de postura mas apenas por não ser considerada prioridade em relação ao acompanhamento de outras situações.
A cidade faz-se de relações de diálogo e cordialidade entre os vários agentes sociais e não promovendo atitudes de intolerância especialmente religiosa.
O uso dos símbolos da cidade significam que as autoridades municipais acompanham a existência das tradições históricas, religiosas e culturais. Não que estejam em subserviencia. Até a sua colocação é disso referência.
Respeitamos os nossos eleitores e os nossos militantes indiferentemente da religião que professem e desejaríamos que não se sentissem descriminados por essa adesão e por isso a nossa presença é significativa para que se entenda que não colocamos de lado ninguém em virtude da sua crença.
A laicidade deixa a religião onde deve estar, fora da esfera da decisão política, não que deva ser escorraçado do espaço público e das relações cordiais com as autoridades da cidade.
Meu caro Vereador Carlos
Meu caro Vereador Carlos Moura,
Registo a atenção prestada ao presente artigo, saudando igualmente o seu posicionamento relativamente ao pensamento marxista e à sua interpretação leninista. Como bem afirmou o Carlos Moura no final da sua cuidada resposta "A laicidade deixa a religião onde deve estar, fora da esfera da decisão política, não que deva ser escorraçado do espaço público e das relações cordiais com as autoridades da cidade.".
Ora, considerando esta última frase não percebo a participação a título institucional em tão piedoso acto, pois ninguém clama aqui para que se escorrace a religião da Cidade ou a que haja relações menos amistosas entre os representantes da Cidade e autoridades religiosas. Simplesmente se advoga uma separação do plano político do plano religioso ou do plano público do plano privado.
Daqui até a um aplauso ou aprovação da participação de autarcas, nessa qualidade - e não na sua qualidade de cidadãos - em eventos desta natureza vai uma grande distância. Um "Rubicão" que foi atravessado, mas não menos notável que o "Rubicão" que o Carlos Moura, enquanto militante de um partido marxista-leninista atravessou.
O mesmo se digna quanto ao uso das insígnias municipais, que o Carlos Moura legitimamente enverga enquanto depositário da vontade popular. Invocar a tradição para o seu uso seria como invocar a tradição para justificar outras realidades, como a ausência da separação do Estado da Igreja ou um eventual regime monárquico.
E aqui, meu caro Carlos Moura, é um oceano que nos separa. Ainda bem que ficámos esclarecidos.
Saudações Democráticas,
Rui Costa
Boa tarde Rui Costa,
Boa tarde Rui Costa,
Foi com imenso prazer que li o seu artigo pois constato que ainda ha em portugal alguem que nao tem receio de falar das relacoes entre a igreja e alguns politicos. Vivo em Geneve e, daqui olhando para Portugal, vejo mais nitidamente o peso que a igreja tem na vida publica portuguesa.
Assim, quando vemos um Presidente de Camara fazendo parte duma procissao, estamos perante uma situacao em que o politico ajuda o padre e o padre ajuda o politico - qual Salazar ajudando o seu amigo Cerejeira e o Cerejeira ajudando o seu amigo Salazar.
Por favor facam constar a todos os politicos eleitos que a sua legitimidade para governar a coisa publica lhes e conferida pelo voto directo e universal, e que ja nao precisam da aprovacao do Papa de Roma, de um Bispo ou de um Padre.
Saudacoes republicanas
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