Não se sabe, ao certo, quais as origens do jornalismo. E, mesmo hoje em dia, existem autores que defendem diferentes conceitos daquilo que é o jornalismo na atualidade. Sabemos que a sua evolução, ao longo dos tempos, tem sido constante: novas técnicas, ideias inovadoras, métodos para chegar mais facilmente aos cidadãos. Mas é incontornável que a missão desta atividade e dos profissionais que a exercem é a mesma: informar e fomentar o espírito crítico dos cidadãos.
O jornalismo funciona como um espaço público, que, em muitas matérias, molda a sociedade e a visão que esta tem dos acontecimentos. A imprensa livre é essencial ao funcionamento da democracia e esta está intrinsecamente ligada aos valores de uma sociedade e ao respeito absoluto pelos direitos humanos. É, por isso, importante entender que os órgão de comunicação social também podem e devem ser fiscalizados quando fogem à sua função.
O mais recente caso é o de uma jovem que foi violada num autocarro do Porto. Na sequência da Queima das Fitas, um grupo de estudantes encontrou uma rapariga praticamente inconsciente no autocarro e aproveitou-se da sua vulnerabilidade e incapacidade de defesa.
Enquanto um dos rapazes do grupo violava a jovem, um outro filmava. Igualmente grave foi a pura negligência, por parte de outras pessoas que, encontrando-se dentro do autocarro, não só nada fizeram para impedir a violação, como alguns até apelaram ao rapaz para que prosseguisse com o ato sexual não consentido.
O vídeo foi divulgado nas redes sociais e, pouco tempo depois, no portal do Correio da Manhã. É de uma gravidade inqualificável que um jornal invada, desta forma, a privacidade da vítima e ignore por completo a necessidade de proteger a jovem.
A questão que agora se levanta, é se a sociedade quer proteger o jornalismo ou se o quer misturar no mesmo saco de revistas cor-de-rosa, em que a polémica, o escândalo e o sensacionalismo são os ingredientes base. Não se admite que um suposto órgão de comunicação social desrespeite o verdadeiro jornalismo com o único objetivo de aumentar as suas audiências.
Os jornalistas têm, acima de tudo, uma responsabilidade para com a sociedade e para com as pessoas que cobrem. Mais, os profissionais desta área não trabalham num ambiente isolado, em que as suas ações afetam um número reduzido de pessoas. O jornalismo tem um impacto profundo na sociedade e as notícias publicadas nos órgãos de comunicação social afetam todo um país e, por vezes, até o mundo.
A essência desta atividade não é subjetiva. O jornalismo deve ser considerado um ato de caráter, que tem de estar patente na linha editorial do jornal. Esta profissão, assente na responsabilidade social e na ética, não pode desumanizar nem humilhar ninguém.
É inadmissível que, quem deliberadamente viola o Código Deontológico, se possa continuar a apresentar à sociedade como jornalista. Um "jornal" que pratica um ato tão criminoso como o de publicar um vídeo de uma violação não pode continuar impune. É altura de ter coragem política e executar medidas para que estas práticas repugnantes não voltem a acontecer.
Mais, o Correio da Manhã não pode continuar a fazer uso do argumento da "liberdade de expressão" e "obrigação de informar", como já o fez tantas vezes. É preciso entender que existe uma linha que separa a liberdade de expressão da transgressão dos direitos individuais. O que o Correio da Manhã fez não foi publicar uma notícia a título do interesse público; foi sim proceder a um delito de enorme gravidade, ao transformar um crime sexual num espetáculo em que toda a gente teve direito a bilhete.
A liberdade de expressão e a obrigação de informar os cidadãos têm fronteiras que não podem ser ultrapassadas quando colocam em causa a integridade e a dignidade das pessoas envolvidas. O próprio Código Deontológico dos Jornalistas assim o confirma, nomeadamente nas alíneas 7 e 9.
7 - O jornalista deve salvaguardar a presunção da inocência dos arguidos até a sentença transitar em julgado. O jornalista não deve identificar, direta ou indiretamente, as vítimas de crimes sexuais e os delinquentes menores de idade, assim como deve proibir-se de humilhar as pessoas ou perturbar a sua dor.
9 - O jornalista deve respeitar a privacidade dos cidadãos exceto quando estiver em causa o interesse público ou a conduta do indivíduo contradiga, manifestamente, valores e princípios que publicamente defende. O jornalista obriga-se, antes de recolher declarações e imagens, a atender às condições de serenidade, liberdade e responsabilidade das pessoas envolvidas.
O Correio da Manhã não olha a meios para atingir os fins, está a saquear os valores e os princípios do jornalismo e a manchar o nome de uma atividade que é séria e necessária ao bom funcionamento da sociedade.
Não é admissível que este órgão de comunicação social continue a ser castigado com meras repreensões ou exigências de pedidos de desculpa públicos. Até porque este "jornal" se recusa a alterar o seu "modus operandi" , prosseguindo com “notícias” sensacionalistas que roçam o assédio moral.
Outra questão a equacionar é se as instituições de ensino superior de Jornalismo e Comunicação devem ou não cessar, de imediato, as parcerias que têm com o Correio da Manhã, nomeadamente para estágios curriculares.
Não esqueçamos que os estudantes de jornalismo estão a iniciar a sua carreira numa área de enorme responsabilidade cívica. Não faz qualquer sentido que, ao longo dos cursos, os estudantes de jornalismo tenham cadeiras obrigatórias de deontologia e de ética para, no fim, acabarem a trabalhar com um "jornal" que viola inúmeras premissas e valores, que devem estar impregnadas na atividade e que devem ser consumadas pelos profissionais desta área.
Independentemente do que irá acontecer daqui para a frente, a verdade é que o mal já está feito. Ainda que o vídeo tenha sido retirado do site do Correio da Manhã, o que cai na rede da Internet, para sempre lá ficará para quem quiser ver de novo.
Para o Correio da Manhã, esta foi uma forma de aumentar as audiências a todo o custo. Mas o que aconteceu não foi um momento de diversão, não foi algo que possa ser justificado pela idade, não foi uma coisa de jovens.
E não, a vítima não se "pôs a jeito", como ouvimos tantas vezes. A culpa da violação é do violador. Ponto. Mas parece que, para alguns, na sociedade onde vivemos, a mulher nasceu para partilhar sempre parte da culpa, qualquer que seja a situação.
Por detrás daquela câmara de telemóvel, estava uma pessoa, estava uma vida. Podia ter sido a nossa irmã, podia ter sido a nossa filha, podia ter sido qualquer uma de nós. E quanto ao facto de a jovem não ter apresentado queixa, seria bom esclarecer que não apresentar queixa, não significa não ser vítima de um crime. Seja por medo, seja por vergonha, seja por pressão da família ou por qualquer outra razão que tenha levado a jovem a não apresentar queixa, este acontecimento não deixa de constituir um crime. Um crime grave, com vários culpados. E a vítima não é um deles.
