Se fizermos um raio-x ao sistema de impostos sobre o rendimento, há um facto que salta à vista: o universo de contribuintes líquidos é dominado pelos trabalhadores – são os rendimentos do trabalho o pilar da receita dos impostos diretos. Ter um trabalho por conta de outrem é a base da condenação ao castigo pelo cobrador de impostos, seguido ao longe pelos trabalhadores independentes e muito mais à distância pelas empresas. É em meados de junho que a propaganda liberal assinalará o dia da libertação dos impostos, mas essa é a mentira que coloca todos como iguais enquanto esconde que é o salário que mais contribui para o financiamento do Estado e dos serviços públicos.
Há um sistema paralelo em que as regras não se aplicam como ao comum dos mortais, um mundo a que só acedem os mais ricos ou as empresas mais poderosas. Nessa realidade, os governos são indulgentes com a evasão fiscal, o lema é não pagar. É um sistema legal, mas completamente imoral, filho da globalização neoliberal e pai de um aumento brutal das desigualdades. Vejamos um dos escândalos recentes.
No Parlamento Europeu, aprovaram legislação que obriga as multinacionais a maior transparência fiscal. O que seria um avanço, acaba por ser um passo atrás, pois a mesma legislação permite às empresas omitir os lucros com impostos pagos em territórios como a Suíça, as Bahamas ou as Ilhas Caimão
A Microsoft tem uma subsidiária na Irlanda que apresentou um lucro de 260 mil milhões de euros no ano de 2020. Sabe que imposto foi pago sobre este lucro anual gigantesco, quase equivalente a toda a dívida pública portuguesa? Nada, nem um cêntimo, não foi pago qualquer cêntimo de IRC por todo este lucro. A investigação foi feita pelo jornal britânico The Guardian, que acrescenta um pormenor extraordinário: esta empresa não tem qualquer trabalhador, apenas diretores. Como não há diretores assim tão produtivos, a conclusão sobre a empresa é bastante óbvia, não é bem uma empresa, antes uma criação da engenharia financeira para fugir ao pagamento de impostos. O corolário desta história é que o pagamento zero de imposto se justifica pela empresa estar domiciliada nas Bermudas. Se está agora indignado com o que o fisco lhe leva no final do mês, saiba que é por ganhar pouco; caso o rendimento tivesse mais uns zeros, o tratamento poderia ser bem diferente.
O lucro apresentado pela filial da Microsoft representa quase três quartos de todo o Produto Interno Bruto (PIB) da Irlanda, mas não pagou qualquer imposto. E, como já deve saber, está longe de ser a primeira vez que tal acontece no tigre celta. A Irlanda é mais uma peça no xadrez dos offshore, paraísos fiscais, regimes fiscais claramente mais favoráveis e dumping fiscal, mas está longe de ser a única. Esta teia mundial é responsável pela perda de receitas dos Estados, o aumento das desigualdades e a responsabilização dos mesmos de sempre perante o financiamento dos Estados – os trabalhadores.
Segundo o EU Tax Observatory, um observatório que trabalha com a Comissão Europeia, se as empresas que operam no espaço da União Europeia fossem tributadas a uma taxa de 21%, a receita total do IRC aumentaria em 30%. Arrisco a dizer que, além de uma maior justiça fiscal, a distribuição destes rendimentos tenderia também a favorecer os países periféricos, como Portugal.
O debate sobre a criação de um imposto mínimo sobre as empresas terá lugar na reunião do G7 que se realiza hoje e amanhã em Londres. Joe Biden lidera com a proposta, apesar de ela só parecer extraordinária face à proliferação dos esquemas de evasão fiscal das multinacionais. É que a proposta de Biden de taxar as empresas em 15% ainda está muito longe do esforço que se pede aos rendimentos do trabalho. Continuaria desequilibrada a balança entre capital e trabalho. No entanto, mesmo a proposta recuada de Biden parece inaceitável à gula de quem se habituou a fugir ao pagamento dos impostos ou aos governos que pactuaram com esta engenharia financeira.
Vejamos o que aconteceu nos últimos dias no Parlamento Europeu. Apresentada como um grande avanço em direção à justiça fiscal, aprovaram legislação que obriga as multinacionais a maior transparência fiscal. O que seria um avanço, acaba por ser um passo atrás, pois a mesma legislação permite às empresas omitir os lucros com impostos pagos em territórios como a Suíça, as Bahamas ou as Ilhas Caimão. Isto é mesmo gozar com quem trabalha.
Artigo publicado no jornal “Público” a 4 de junho de 2021