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Indignação

Confirma-se que nos regimes cleptocráticos o mérito está no berço onde se nasce e dá muito jeito ser filha do “Camarada Número Um”.

1. A investigação a Isabel dos Santos é uma bomba que expõe a construção de um império à custa do saque feito a um país, de uma riqueza imensa roubada a um povo na miséria. As suspeitas eram muitas e as certezas já não deixavam dúvidas, mas o que aconteceu agora foi a queda da máscara da empresária de sucesso, da meritocracia. Confirma-se que nos regimes cleptocráticos o mérito está no berço onde se nasce e dá muito jeito ser filha do “Camarada Número Um”.

Os amigos portugueses de Isabel dos Santos assobiam para o lado e muitos fingem até espanto com o que vem a público. “De onde vem o dinheiro?” é pergunta que nunca quiseram fazer, porque nunca tiveram dúvidas que ele era sujo e isso não lhes pesava na consciência. Agora, assistimos a um festival de hipocrisia.

A queda de um anjo acontece porque se tornou impossível manter a mentira, mas também porque o poder mudou em Angola. E os mesmos que suspiravam pelos milhões de Isabel dos Santos querem agora continuar sentados à mesa dos petrodólares e nas boas graças de quem agora governa.

Os reguladores portugueses são a prova da cumplicidade com a família Dos Santos. Do Banco de Portugal à CMVM, ninguém sabia de nada, mesmo quando noutros países os capitais de Isabel dos Santos começavam a ser questionados sobre esquemas de lavagem de dinheiro e benefício próprio. O principal deles, Carlos Costa, tem agora o reconhecimento internacional da característica com que mais se distingue entre nós: incompetência.

As empresas de consultadoria mostram como o dinheiro tudo compra e os códigos deontológicos servem apenas para propaganda. Empresas como a PwC, KPMG, Boston Consulting, Ernst & Young ou Deloitte ajudaram a montar um gigantesco império de 400 empresas em 41 países. A engenharia financeira necessária para desviar dinheiro público angolano para as contas privadas de Isabel dos Santos. As chorudas comissões ajudavam a comprar o silêncio e a abrir as portas das praças offshore internacionais. O mesmo se passa com os escritórios de advogados da nossa praça, como a Vieira de Almeida e a PLMJ, pilares fundamentais em todo o esquema.

Os parceiros de negócio de Isabel dos Santos mostram a conivência do centrão. Era ver Mira Amaral (PSD) e Teixeira dos Santos (PS) no banco BIC, Miguel Relvas (PSD) na Finertec, ou ainda Armando Vara (PS), Fernando Nogueira (PSD) e Martins da Cruz (PSD) no BCP e Millenium Angola.

Nem os governos fizeram qualquer crítica à família Dos Santos. Do tempo da troika, em que as privatizações eram moda, Passos Coelho vendeu o BPN ao banco BIC, Rui Machete pediu desculpa pela justiça portuguesa investigar capitais angolanos e Paulo Portas pedia para não se cair na “judicialização” das relações entre os dois países. São só alguns exemplos.

Já o PS enviou o seu presidente, Carlos César, ao congresso do MPLA ainda Eduardo dos Santos estava à frente dos destinos angolanos. António Costa abriu, pessoalmente, a porta do BCP à entrada do capital de Isabel dos Santos e Caldeira Cabral, Ministro da Economia, agradeceu-lhe os investimentos no país.

Este consenso nacional tinha apenas uma voz discordante, o Bloco de Esquerda. Nunca calámos perante o saque ao povo angolano, a sua miséria e a sua falta de liberdade.

Agora, exige-se ação e responsabilização. A reposição ao povo angolano do que lhe foi roubado e a total investigação de quem foi cúmplice do saque. Faça-se Justiça.

2. A fotografia da Cláudia Simões é brutal. Como se chega a um estado daqueles com fortes hematomas porque a filha se tinha esquecido do passe (gratuito) do transporte em casa é absolutamente incompreensível. Alegadamente foi um espancamento policial, mas a versão do polícia é que foi uma queda.

Já conhecemos a desculpa da queda. Ela é repetida e quase sempre falsa. É assim na violência doméstica ou sobre crianças, mas também na violência policial. A situação merece um esclarecimento cabal e uma investigação idónea. E sim, deve ser equacionada a hipótese de motivação racista.

A vida de um polícia não é fácil, reconheço. As exigências são muitas, os salários são baixos e as condições precárias. Mas a farda carrega uma responsabilidade que tem de ser respeitada. Aparentemente não foi isso que aconteceu.

Artigo publicado no jornal “Público” a 24 de janeiro de 2020

Sobre o/a autor(a)

Deputado, líder parlamentar do Bloco de Esquerda, matemático.
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