Está aqui

Identidade: Professor

A aula é um exercício performativo da transformação do mundo e dela saímos diferentes, de cada vez, vitoriosos ou derrotados.

Tantas vezes, em tempos recentes, vociferei contra o excessivo número de cadeiras que leciono, queixoso da falta de tempo para escrever, explorar, aprofundar, inovar, investigar. A idade não ajuda, pois desgasta a paciência e aguça a sensibilidade à aceleração que atua como vórtice dispersivo no frenesim do dia a dia burocrático em que a profissão se transformou.

Mas hoje, sinto no corpo a falta das minhas aulas. Não hesitei, um só momento, em atirar-me de cabeça às plataformas de comunicação à distância, que, no essencial, têm cumprido. Deitei mãos à obra na readaptação de conteúdos, modelos de avaliação e modos de interação pedagógica. Encaro meticulosamente cada aula com o entusiasmo possível, estimulo o debate e a participação, tento perceber estados de animo, dificuldades e entraves à aprendizagem. Por momentos, no início e fim da aula, peço para ver as faces dos alunos e terminamos, de comum acordo, invariavelmente, com um “tchau!” sincronizado, em uníssono, para provarmos mutuamente que estamos vivos, que não esquecemos o calor das vozes modeladas pelo afeto.

Contudo, não é nem de longe nem de perto a mesma coisa. A interação pedagógica é muito mais do que a transmissão verbal. Há nela corpos em situação, intersubjetivos, tensos e expetantes, à espera de serem transformados pelo tom, a postura, o gesto, a dição, o cenário, a situação. Nela, é tão importante o dito como o não dito, o linguístico, como o extralinguístico, o explícito como o implícito, o verbo como a música da hesitação e do silêncio. No momento em que acontece, a aula torna presentes origens, percursos e contextos tão díspares quanto as vidas de professores e alunos.

Por isso, a aula é potência, promete sempre mais, abre-se ao inesperado, desafia planos pré-formatados, transborda e subverte programas. Por isso, a aula é um campo de batalha entre expetativas, raízes e projetos, ideias e preconceitos, embate de visões do mundo. Por isso, a aula é esfera pública, treino racional, crítico, atento e reflexivo da capacidade de argumentar e contra-argumentar. Por isso, a aula, tal como a concebo, desafia a situação oficial de fala e questiona, sem a ilusão populista de a derrubar, a legitimidade da autoridade professoral que tem de se reinventar no diálogo. Por isso, a aula é um exercício performativo da transformação do mundo e dela saímos diferentes, de cada vez, vitoriosos ou derrotados. Por isso, teatro mundo e do mundo, a aula é uma outra forma de aprendermos papéis e reportórios, sem que um Deus ex machina nos salve em situação de impasse ou embaraço.

Tenho, bem se percebe, saudades das tardes de Inverno em que, malgrado o frio, transpiro à exaustão e vejo-me obrigado a trocar de camisa no gabinete no final de cada aula. Tenho saudades desse cansaço saudável, incomensurável na sua alegria, de um corpo que se atirou à luta, o melhor que pôde. E sem esquecer todos os meus trânsitos e papéis sociais, sem olvidar que, por profissão de sociólogo e universitário, analiso, observo, recolho e interpreto informação, escrevo, examino e dissemino, eis que regresso ao centro, ao início, àquilo que me define e distingue. Vou nomeá-lo, vou nomear-me: eu sou um professor.

Artigo publicado em publico.pt a 6 de maio de 2020

Sobre o/a autor(a)

Sociólogo, professor universitário. Doutorado em Sociologia da Cultura e da Educação, coordena, desde maio de 2020, o Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
(...)