O anúncio dum novo pacote legislativo designado por “Mais Habitação” tem suscitado viva controvérsia.
As propostas do governo são mais um exemplo da falta de coragem do poder político em responder aos problemas da habitação das classes populares. Em vez de ser posto em causa o papel dominante dos interesses privados na produção/oferta de habitação, a discussão no espaço mediático foi rapidamente tomada pelos temas do “arrendamento forçado das casas devolutas” e da (necessária) contenção territorial do “alojamento local”. E assim, algumas das questões mais relevantes da habitação foram completamente desvalorizadas e ficaram sem resposta.
Quantas casas têm sido construídas no nosso país?
É uma das perguntas que não tem sido feita. Os números do regime de Salazar e Caetano são terríveis: em mais de 40 anos, a partir de 1926, o Estado Novo promoveu a construção de menos de 50.000 fogos nas diversas modalidades, casas para famílias pobres, casas de renda económica, casas de renda limitada, casas económicas e casas para pescadores. Em 1973, das 41.923 casas construídas, menos de 5.000 foram de iniciativa pública. Mesmo após o 25 de Abril de 1974 e apesar das carências habitacionais apontarem para 530.000 fogos (in DR nº 90/1976 de 15/4/1976), a construção de fogos continuou a ser dominada pelo sector privado, sendo que a promoção de iniciativa pública foi sempre muito reduzida: 5.848 em 1977, 5.665 em 1980, 5.525 em 1983 ou 1.590 fogos em 1986. A título de comparação, refira-se que a média de construção na Europa ultrapassa os 9 fogos por 1.000 habitantes e a ONU-Habitat recomenda um ritmo anual de construção de 8 a 10 casas/1.000 habitantes, o que implicaria a construção de pelo menos 90.000 fogos/ano. Chegando agora aos números do último Censos do INE, o total dos novos fogos para habitação concluídos em 2021 foram 19.081 (em 2002 tinham sido 125.708), entre 2001 e 2011 foram construídos 521.433 alojamentos, e de 2011 a 2021 foram construídos 123.541 alojamentos (cinco vezes menos). É certo que o INE também refere que dos 5.981.482 fogos atualmente existentes, 70% são de residência habitual, 18% são residência secundária e 12% estarão vagos, correspondendo a 723.215 casas sem gente (situação comum nos países onde predomina o modo de produção capitalista: Alemanha - 1,8 milhões de fogos vagos, França - 2,5 milhões, Espanha - 3,4 milhões de fogos vagos, EUA - 18 milhões de casas vagas). Os fogos vagos não têm tido o IMI agravado pelos municípios como a lei prevê, mais um exemplo da submissão dos presidentes de câmara ao sector imobiliário. Mas neste quadro será correta a conclusão de alguns de que não deverão ser construídos novos fogos para responder à penúria habitacional ? Se tivermos em conta que mais de 800.000 prédios foram construídos há mais de 60 anos, bastantes serão ruínas e que muitos dos fogos vagos estão em territórios onde ninguém quer viver, teremos que concluir que é preciso construir mais casas, principalmente de promoção pública. Bem fez o programa SAAL, criado em agosto de 1974 e que enquanto não foi extinto por um governo do PS em Outubro de 1976 não se deixou amarrar pelos 379.950 fogos vagos indicados pelo INE em 1970, e ao invés colocou como seu objetivo construir casas para moradores pobres com a participação dos próprios moradores.
O que se tem construído?
- 87% dos edifícios existentes são para um único agregado familiar (apenas um alojamento), num brutal desperdício de solos e de infraestruturas urbanas. Razões para esta desqualificação da habitação coletiva e da propriedade horizontal face às moradias? “Os edifícios grandes são um campo aberto ao comunismo, não sendo por isso preconizados senão pelos partidos da extrema-esquerda” (Etienne de Groer, urbanista convidado por Duarte Pacheco) ou “Um perigo moral são as ligações que se estabelecem entre as diferentes famílias num grande prédio” (“Problemas da habitação”-Vicente Moreira-1950).
- prioridade à habitação própria: o elemento mais consistente da política pública habitacional, definido logo em 1976 (Resolução do Conselho de Ministros de 16 de março), foi a promoção da compra de habitação própria... para relançar a indústria da construção civil e a banca, através do crédito à habitação. E assim, em muitas freguesias deste país, a proporção de habitação própria no conjunto dos alojamentos é superior a 80%, proporção muito acima da média europeia.
No conjunto dos países da Europa, onde está Portugal na habitação pública?
Outra situação que continua a ser secundarizada. Na Europa dos 27 podemos encontrar três grupos de países, quanto ao peso do alojamento social no conjunto dos fogos existentes: o dos países onde mais de 12% das famílias residem em habitações sociais (Áustria, Dinamarca, Finlândia, Países Baixos, França, Inglaterra), um segundo grupo de países em que o alojamento social representa entre 5% a 10% das residências principais (Alemanha, Bélgica, Itália, Irlanda, Malta) e um terceiro grupo de países onde o parque de alojamentos sociais é inferior a 5%, quase residual (Luxemburgo, Espanha, Grécia e Portugal).
Percentagem de habitação social em países da União Europeia
Daí terem sido colocadas (e bem) como metas do programa 1º Direito (DL nº 37/2018 de 4 de junho), o programa habitacional público mais inclusivo dos últimos 46 anos (de que o Bloco de Esquerda através do Proj. Resolução de 7 de julho de 2016 foi o principal impulsionador), para além do realojamento dos 25.762 agregados familiares indicados pelos municípios no Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento, a construção de mais 170 mil habitações públicas até 2026 (a juntar aos cerca de 130.000 fogos públicos), a fim de se alcançar 5% de habitação social. Este objetivo de 5% (300.000 alojamentos sociais no conjunto de todo o parque habitacional no país) é absolutamente necessário para disponibilizar casas às classes populares e deve ser cumprido. Mas os dados conhecidos até agora, através das mais de duzentas Estratégias Locais de Habitação (ELH) já aprovadas, indicam que grande parte dos municípios não se comprometeu com aquela meta de mais habitação pública. Assim, caso não ocorra uma revisão forçada dos números previstos nas respetivas ELH de construção/aquisição de novos fogos de iniciativa pública (câmaras e IHRU) alguns dos municípios com situações habitacionais indignas, terão aumentos residuais no parque habitacional público. A título de exemplo e apenas na Área Metropolitana de Lisboa, o município de Almada passará de 4,9% fogos públicos para 5,6% (+ 1.093 fogos), Amadora de 3,5% para 3,75% (+ 222 fogos públicos), Lisboa passará de7,84% para 8,57% (+ 2.334 fogos), Loures de 2,64% para 3,6% (+ 950 fogos públicos), Seixal de 0,27% para 1,77% (+ 1.111 fogos), Barreiro de 0,98% para 1,78% (+ 337 fogos), Moita de 2,5% para 2,9% (+ 127 fogos), Sintra de 0,86% para 1,55% (+ 1.437 fogos públicos). E nos municípios da Área Metropolitana do Porto a resposta é semelhante, construção por promoção pública muito muito aquém dos 5%.
Que razões para o incumprimento do objetivo mais que justo de se disponibilizarem 300.000 alojamentos sociais?
Uma explicação possível: em vez de aceitarem a definição técnica da OCDE (Divisão Social) de habitação social: “aquela que é atribuída de acordo com regras específicas fora do mercado e cuja renda é fixada em valores abaixo do mercado”, nos municípios e noutras entidades com responsabilidades públicas ainda persiste a velha ideia salazarenta de que a habitação social é para gente pobre, construção com materiais fracos de conjuntos habitacionais com centenas de casas, em locais periféricos e urbanisticamente desqualificados... Os presidentes de câmara não querem habitação social nos seus territórios, apesar dos números tão expressivos em tantas cidades europeias quanto à proporção dos alojamentos sociais no conjunto do respetivo parque habitacional: Helsínquia 13%, Bruxelas 12%, Charleroi 10%, Aarhus e Copenhaga 28%, Manchester 30%, Belfast 27%, Paris 20%, Linz 54% ou Viena 43%... (cfr. quadro “The share of social housing” in The State of Housing in the EU 2019, p. 25). O preconceito ideológico contra os sem-casa e as famílias pobres, a submissão aos interesses imobiliários continua a ser dominante nas políticas habitacionais das autarquias.
O preconceito ideológico contra os sem-casa e as famílias pobres, a submissão aos interesses imobiliários continua a ser dominante nas políticas habitacionais das autarquias
Mais temas habitacionais que não estão a ser debatidos (mas que foram já suscitados por M. Roque Laia, incansável lutador pelos direitos dos inquilinos, no seu “Projecto de um Código do Inquilinato Urbano” - 1966):
- proprietário e proprietário-senhorio: é a mesma figura jurídica? “Toda a propriedade que entrou no mercado de arrendamento porque sofre limitações, passa a ser uma categoria específica da propriedade privada e gera também uma categoria diferente de proprietário - a do proprietário-senhorio”
- limites para a renda da casa: deve haver? “A renda da casa não deve absorver mais do que uma percentagem entre 1/10 e 1/6 das receitas do orçamento familiar”
A gravidade da situação habitacional exige dos poderes públicos respostas corajosas que façam frente à financeirização da habitação da qual decorre o aumento brutal das rendas e do preço das casas. 40% do investimento privado mundial em 2022 foi orientado para o imobiliário e Portugal está no 7º lugar dos países europeus com maior procura de investidores internacionais (in Knight Frank-Relatório sobre a Riqueza Mundial, p.44). No país, o valor sob gestão dos 200 fundos de investimento imobiliário (FII) existentes já ultrapassa os 11 mil milhões de euros (CMVM-Relatório sobre os mercados de valores mobiliários-2021, p.58). E se acrescentarmos a intervenção no setor imobiliário dos fundos de pensões e fundos de investimento estrangeiro a pergunta a colocar é: que parcela do solo das cidades é já hoje propriedade dos agentes do capital financeiro? Os municípios continuam completamente desinteressados em conhecer e enfrentar esta realidade. Assim, só a participação exigente dos cidadãos e cidadãs e a intervenção das forças políticas de esquerda poderão obrigar à adoção de políticas públicas que respondam não apenas ao desassossego dos inquilinos e às dificuldades de quem tem que pagar a prestação do empréstimo bancário, mas que assegurem uma habitação digna para todas e todos que não têm casa.
Habitação para quê? Para alojar dignamente as pessoas, e não para serem ativos financeiros que os fundos imobiliários utilizam para obterem milhões de euros através da especulação.
Habitação para quem ? Para todas e todos que dela necessitam, sem discriminações nem preconceitos.