Galeguia: descolonizar as nossas línguas

porBruno Góis

17 de junho 2014 - 12:22
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O pretexto destas linhas é a adesão da cantora e compositora angolana Aline Frazão a uma ideia com potencial emancipatório: trocar a Lusofonia pela Galeguia.

Línguas e nações

“Uma língua é um dialeto com exército e marinha"1. Podem algumas doutas cabeças tentar (e fazer) estudos puros/logico-matemáticos das línguas, do direito, ou de outra realidade social qualquer. No entanto, a perfeição geométrica das regras subordina-se ao movimento das contradições sociais em ação. Ninguém para a linguagem inclusiva! … por exemplo.

Razão tinham já os gregos antigos, para quem palavra e pensamento eram (e são) a mesma coisa: logos. E se o trabalho é fundante da realidade social, ele se articula também com esse elemento necessário: a linguagem. Ao ponto de ser interessante a imagem de Marx: “[a] produção por um indivíduo isolado fora da sociedade […] é um absurdo tão grande quanto o desenvolvimento de linguagem sem indivíduos que vivam uns com os outros e falem entre si”2.

Noutro momento e encaminhando-nos para o tema que quero aqui tratar - as línguas, Marx criticou através da ironia o desprezo cosmopolita pela questão nacional: “[o]s ingleses riram muito quando eu comecei o meu discurso dizendo que o nosso amigo Lafargue e outros que aboliram as nacionalidades, se nos dirigem em francês, isto é, numa língua que é incompreensível para 9/10 da assembleia”. Prosseguindo: “[d]epois eu insinuei que Lafargue, sem que ele próprio se dê conta disso, compreende por negação das nacionalidades, parece, a sua absorção pela exemplar nação francesa”3.

A questão nacional está aqui e agora bem viva: as reivindicações de soberania quer pelas nações periféricas que querem independência face ao Estado Espanhol, quer pelos Estados intervencionados pela Troika e sob ataque da finança internacional (com cumplicidade das burguesias indignas) são disso exemplos fortes e familiares.

A língua é um dos elementos estruturantes das nações enquanto realidade social. É uma determinação mas não única, nem suficiente. Várias nações falam as mesmas línguas, mas são realidades socioeconómicas diferentes, com uma história política que as moldou de forma diferenciada. Uma realidade complexa e controversa, mas sem a qual não se pode compreender na prática a transformação social emancipatória. Afinal: de quem é a propriedade pública? quem vota? como é a escola pública? a quem se taxa? em nome de quem se decide e se aplica o código penal? ... são questões a colocar na prática e na realidade social. Mas voltemos à Galeguia.

Galeguia

O termo galeguia como substituto de lusofonia foi cunhado pelo escritor brasileiro Luís Ruffato em 2005, num dia simbólico: o dia da Pátria Galega, 25 de julho. Estava o escritor brasileiro em Santiago de Compostela no VIII congresso da Associação Internacional de Lusitanistas quando formulou essa ideia. Adriana Lisboa (Brasil), José Luís Peixoto (Portugal), Possidónio Cachapa (Portugal), Ondjaki (Angola), Luís Cardoso (Timor), Quico Cadaval (Galiza) e Carlos Quiroga (Galiza) foram os primeiros escritores e escritora a aderir à nova expressão. No mesmo ano, em visita à Galiza, também Pepetela defendeu as virtudes político-culturais da galeguia para substituir a lusofonia, nomeadamente por suprimir o peso colonial.

Num tom libertador, a cantora angolana Aline Frazão resumiu assim a proposta: “Vai ser que, afinal, não falamos a língua do colono: falamos galego de Angola, com o sabor bantu do Atlântico-Sul”. É uma forma romântica (em diferentes sentidos) de encarar a galeguia como alternativa à lusofonia. De imediato fiquei seduzido por esta ideia de substituir aquela palavra que foi decalcada do francês “francophonie” - como recordou Pepetela - e que tem o gene da Françáfrica mutado para versão Lusotropical - acrescento eu.

Galeguia é uma palavra e uma ideia que permite na batalha ideológica uma reapropriação popular do espaço de cooperação e produção cultural que está cativo na CPLP. Em resumo, note-se como a vergonhosa adesão da Guiné Equatorial, com cheiro a petróleo e a sangue4, desmascara bem os valores da “lusofonia” dos dominantes. É certo que Aline Frazão, criticando esse evento, defende adesão da Galiza à CPLP, no artigo ‘Trocar a Lusofonía pela Galeguía5. Reivindicação justa. Mas o que era preciso era que essa cooperação e esses países, incluindo a Galiza, se reencontrassem com a força histórica dos movimentos de libertação anti-coloniais.

Mais que uma língua, o diálogo entre as línguas da galeguia constitui o nosso tesouro comum. A polémica linguística do Galego entre o “autonomismo”, por um lado, e o “reintegracionismo” (na língua portuguesa), por outro, é questão que diz respeito principalmente às galegas e aos galegos. Disso, portanto, não tratarei (nem do “minha pátria é a língua portuguesa” com que Bernardo Soares/Fernando Pessoa criticava a reforma ortográfica de 1911 e acordos subsequentes). Quero antes sublinhar que o reconhecimento do papel do Galego e introdução da tónica “descolonial” é libertadora para o potencial de cooperação cultural e científica entre os povos cujas línguas partilham uma origem na língua medieval galego-portuguesa.

Com a opção pela galeguia: o que se revaloriza etimologicamente na fonte do contacto linguístico (língua galego-portuguesa) não é a mítica do povo português como herdeiro dos ‘lusitanos’, mas a raiz galega, língua reprimida pelo Estado Espanhol durante o franquismo e, por outros meios, ainda hoje reprimida, e a nação a quem é negado o direito a decidir sobre o seu futuro. Assim, com a adesão àquela ideia, a língua portuguesa pode expiar os seus pecados de perseguição às línguas dos povos das colónias. Desta forma, essa língua que ganhou força e corpo por ter “exército e marinha” pode reconciliar-se com os crioulos da pátria de Amílcar Cabral.


1 É uma expressão germinal popularizada pelo linguista Max Weinreich, que a proferiu em iídiche em 1945.

2 Karl Marx – “Grundrisse der Kritik der Politischen Ökonomie”. Economic Works of Karl Marx 1857-61. Publicação autorizada da edição da Penguin, 1973 em Marxist Archive Internet <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1857/grundrisse/ch01.htm>.

3 V.I. Lenine – “Sobre o Direito das Nações à Autodeterminação” [maio de 1914]. em Obras Escolhidas em Três Tomos. Lisboa/Moscovo: Edições Avante!/Edições Progresso. Disponível em Marxist Internet Archive,

<http://www.marxists.org/portugues/lenin/1914/auto/cap03.htm>.

5 “Trocar a Lusofonia pela Galeguia” em Rede Angola, 12 de Junho de 2014, disponível em http://www.redeangola.info/opiniao/trocar-a-lusofonia-pela-galeguia-2/

Bruno Góis
Sobre o/a autor(a)

Bruno Góis

Investigador. Mestre em Relações Internacionais. Doutorando em Antropologia. Ativista do coletivo feminista Por Todas Nós. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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