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A estreia do Presidente

Cavaco Silva estreou os poderes do novo cargo de Presidente da República no veto político à lei da paridade. Outra coisa não seria esperar.

Frente a uma lei que procura destrinçar os nós que há 30 anos vedam às mulheres um lugar na representação política, o Presidente da República torceu o nariz e usou palavras fortes: a proposta de lei iria “constituir uma severa restrição à liberdade e ao pluralismo de opções”, “interferir de forma exorbitante, na liberdade e identidade ideológica de cada partido”; a paridade iria “restringir”, “dificultar”, “petrificar” o regime democrático. Malvadezas que Cavaco não poderia tolerar. Na direita tacanha e misógina, que Cavaco nunca enjeitou representar, a democratização da representação política é coisa perigosa.

E percebe-se. No seu próprio partido, o PSD, há hoje 6 mulheres eleitas em 75 deputados da AR.O outro partido que o apoiou na subida a Belém, o CDS-PP, tem uma mulher numa bancada de 12 deputados. Em todo este debate, o argumento usado pelas bancadas da direita é o de sempre, e é de estarrecer: as mulheres entrarão na política pelo seu próprio pé, pelo seu próprio mérito. Corolário lógico: não existem hoje, à direita, mais que 7 mulheres merecedoras do lugar de deputada.

E pelo desempenho dos seus homens, fica a suspeita da tragédia interna que grassa no PSD e no CDS-PP. O PCP alinhou pelo mesmo diapasão, e congratulou-se com a decisão do Presidente da República. Bizarra convergência? Não. A paridade foi lida no PCP como uma intromissão na vida do partido. Na sua crónica do Público, Victor Dias, dirigente do PCP, lembrou-nos que não foi para isto que fez o 25 de Abril… É triste perceber que o anti-fascismo não é sinónimo de compreensão do que é a vivência da democracia. A ideia de tornar reais os direitos igualitários inscritos na lei, a vontade de combater as discriminações onde elas de facto existem e marcam as vidas, nada disto passa a barreira ideológica de um único conflito central que molda as cabeças de alguns ilustres comunistas. Mas, de facto, não se trata de discutir o mérito, nem a autonomia dos partidos.

Trata-se tão simplesmente de discutir quem representa, quem é o poder. Trata-se de perguntar o porquê da subrepresentação das mulheres em lugares da política. E só pode valer uma de duas explicações. Ou as mulheres não têm capacidade para o desempenho político, para o confronto e o debate que faz o jogo democrático – e é essa a razão porque não estão lá.

Ou então há mecanismos societais que excluem as mulheres, que as impedem de ascender a lugares de destaque e visibilidade nas forças partidárias tradicionais – e então há que mudar as regras para mudar a vida. Podem as mulheres triunfar nas universidades, nas empresas, na arte e na literatura que poucos se incomodam (em público). Mas quando se trata de ascender aos lugares de poder, à representação do poder, não há lugar ao mérito. Há o jogo interno da representação nos partidos, as feituras das listas com mais candidatos que lugares, e nada sobra para quem se move fora das redes masculinas de influências e amiguismo.  E é isto mesmo que voltará a debate na AR amanhã.

O Bloco propõe cortes sérios no financiamento dos partidos que não cumpram a lei na paridade. É simples: no deve o Estado subsidiar quem não cumpre a lei. O PS gizou uma teia complexa de semi-cortes, que irá pôr os tesoureiros partidários de máquina em riste, para determinar o custo-benefício das candidaturas de mulheres. O debate do mérito, da essência viril do 25 de Abril e outros atavismos estarão de novo em análise. Nunca as mulheres pensaram assustar tanta gente.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora do CES
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