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A Esquerda precisa de (re)construir coletivo(s)

A esquerda não pode pensar que basta ter bons programas, boas propostas, boas campanhas, bons slogans… é que a esquerda para vingar tem de ser exercida, vivida, no quotidiano, no coletivo.

Os resultados das eleições europeias são preocupantes. Muitos/as cidadãos/ãs europeus/eias, descontentes com o rumo austeritário da Europa, mostraram o seu descontentamento da forma mais temida: votando na extrema direita; outros, abstendo-se de qualquer participação. O rumo austeritário de um capitalismo cada vez mais selvagem, ultraliberal, poderia, teoricamente, reforçar a esquerda com o enfraquecimento do centro e com a morte da social-democracia, mas, com algumas exceções, isso não está a acontecer.

Vários textos se têm escrito sobre estes resultados eleitorais, por pessoas de esquerda que sentem – e é verdade – a necessidade de reflexão. Com muitos estou de acordo: mais clareza, menos jogo tático, mais acessibilidade no discurso, menos elitismo, mais proposta, abertura à participação democrática, transparência, reconquistar a confiança, transmitir esperança e projeto alternativo de sociedade…

No entanto, a esquerda para crescer e se consolidar necessita de coletivo. A política é, simultaneamente, uma experiência individual e uma ação coletiva, não pode ser uma sem a outra. É através da experiência coletiva que se pode pensar a política de esquerda, ou da política na verdadeira acessão da palavra: como cidadãos e cidadãs vivem em co-existência livres e iguais, como maximizar a liberdade individual através de uma vida coletiva que minimiza as desigualdades. O coletivo é que pode humanizar e politizar (desculpem a redundância) o ideal da política e da democracia, porque é no seu âmbito que tal se constrói.

As relações sociais, as relações de trabalho, a exploração, a opressão, a solidariedade, a luta social e política, os direitos sociais, económicos, culturais… são questões e/ou valores pensados, discutidos pela esquerda, que remetem sempre para a vida coletiva em sociedade. Por isso, para pensar a relação entre o individual e o coletivo, para pensar e exercer a política de esquerda é necessário viver o coletivo. E aqui está um grande desafio na sociedade que temos hoje: uma sociedade individualizada, atomizada, com fraturas entre os que têm medo de perder o seu rendimento, os seus privilégios medíocres e a sua segurança já vulnerável e os que vivem em condições insustentáveis, quer seja em termos económicos ou em termos de direitos, sem futuro; vive-se, atomisticamente, entre o incerteza ou a certeza de não haver futuro. A política e a democracia correm grande risco numa sociedade fragmentada, segregada e atomizada como esta e os resultados são visíveis. É por isso que a burguesia apostou tanto nas últimas décadas na fragmentação, quer seja nas relações de trabalho, quer seja no desenvolvimento do urbano, quer seja na manipulação psicológica do consumo, do individualismo, da competição.

Esse isolamento, essa ausência de comunicação, de partilha de condição comum, de recursos comuns, despolitiza, mata a política e os valores e a racionalidade da esquerda. O isolamento dá insegurança, ignorância, medo, enfraquece e convoca a reação extrema: a necessidade de proteção, a competição, a xenofobia, a violência, a agressividade, a falta de solidariedade, o ódio. A direita e a extrema-direita alimentam-se disto.

A esquerda não pode então pensar que basta ter bons programas, boas propostas, boas campanhas, bons slogans… é que a esquerda para vingar tem de ser exercida, vivida, no quotidiano, no coletivo, pois é através dessa vivência, dessa dialética, dessa discussão, que o pensamento de esquerda cresce. Se nós, esquerda, queremos enfrentar os desafios gigantescos que temos pela frente e lutar pela nossa vida, temos de saber – como outrora soubemos – dar de nós no quotidiano, procurando (re)criar, alimentar e viver o coletivo, nas lutas e em outras vivências, que é onde o pensamento político da esquerda floresce, se desenvolve e se consolida.

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e ativista na Associação Habita
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