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Espelho meu, espelho meu... existe melhor Primeiro-Ministro do que eu?

José Sócrates foi ao Parlamento debater a sua reforma da Segurança Social. Fez bem. Este é hoje um dos debates a que a sociedade portuguesa não deve, ou, melhor dizendo, não pode fugir.

As cartas estavam já lançadas. Antes do Verão, Sócrates tinha vindo igualmente á AR apresentar a proposta que veio depois a ser discutida no âmbito da concertação social. No início de Setembro, Marques Mendes tinha colocado em cima da mesa a eterna proposta da privatização parcial do sistema, com o desvio das maiores contribuições para um regime de capitalização privada. E, nas últimas semanas, o lobby do Compromisso Portugal lançou a sua proposta com parangonas nos jornais, anunciando como novidade a estafada ideia de sempre - quebrar a solidariedade inter-geracional em que assenta o sistema; individualizar, e portanto, privatizar parcialmente as contribuições dos trabalhadores. A vontade de abrir caminhos para o desmontar do sistema público foi tal, que os homens do Compromisso Portugal chegaram a anunciar que a sua proposta permitiria um aumento das pensões na ordem dos 20 por cento...

Creio que não restam hoje dúvidas que o apetite dos mercados financeiros pelo capital acumulado das contribuições dos trabalhadores é voraz. E que as pressões para a privatização parcial do sistema são enormes - dos gurus neoliberais aos comentadores de pacotilha, das eminências pardas da alta esfera financeira ao deslumbramento (algo patético) que tanta comunicação social nutre pelo lobby do Compromisso Portugal.

Mais. A pressão é tanto maior, quanto todos nos apercebemos que a sustentabilidade do sistema e a fraca qualidade das prestações sociais são os dois lados da mesma moeda. O país não ignora a pobreza da maioria dos pensionistas, nem as dificuldades do sistema com as alterações da estrutura etária da população. O país sabe que é necessário reestruturar um sistema que é uma das principais conquistas do regime democrático, um pilar estruturante de uma sociedade que se quer moderna e solidária. O que se exige são, pois, propostas credíveis e corajosas - que façam as escolhas centrais. Isto é, que cada um escolha de que lado está, com quem está. O Bloco de Esquerda apresentou em Maio passado a sua proposta. Não repito aqui os argumentos e as soluções apresentadas porque podem ser consultadas no site do grupo parlamentar do BE com maior detalhe. Refiro apenas que propomos novas formas de financiamento, seja pela participação dos lucros no financiamento do sistema, a par dos rendimentos do trabalho; seja pela criação de uma contribuição de solidariedade (com incidência progressiva, de acordo com os níveis salariais); seja ainda pela redução da contribuição patronal na taxa social única, de modo a não inibir a criação de emprego.

Sócrates e o Partido Socialista escolheram um outro caminho. Para baixo. A equação Sócrates reúne a antecipação da nova fórmula de cálculo e a introdução de um factor de sustentabilidade (em função da esperança média de vida), e tem um resultado - pensões mais baixas.

Mas Sócrates está ufano com o caminho que escolheu. Não compreende o fundamental. Que hoje a pensão média não atinge sequer os 300 euros, que mais de 1,8 milhões de pensionistas recebe menos de 375 euros mensais, e que são os pensionistas a fatia maior dos 2 milhões de pobres do país. Não compreende que a sustentabilidade de um sistema público mede-se também na qualidade das prestações que fornece, e que a sua credibilidade está em jogo cada vez que nos lembramos que um pensionista do regime social e do regime agrícola recebe em média cerca de 200 euros.

No debate de anteontem, José Sócrates não resistiu a exibir a sua vaidade. Disse que nenhum primeiro-ministro foi capaz de fazer uma reforma de tal envergadura em ano e meio. Ora, vejamos. Salvar o sistema público da segurança social, dar-lhe futuro e credibilidade, é colmatar a dívida social que o país tem com homens e mulheres que trabalharam toda uma vida e que têm hoje pensões de miséria. É ter a coragem de reinventar novas formas de financiamento que respondam ás transformações societais dos últimos 30 anos. É saber que aqui se jogam décadas do futuro do país. O plano Sócrates para a segurança social ignorou tudo isto. Espelho meu, espelho meu, existe alguém mais cego do que eu?

Sobre o/a autor(a)

Investigadora do CES
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