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Espanha recusa-se a investigar o terrorismo de Estado
“Terra de Ninguém”, documentário de Salomé Lamas oferece-nos um importante testemunho de um mercenário português contratado em 1986 para integrar os GAL (Grupo Antiterrorista de Libertação). “Nos GAL não éramos guerrilha. Éramos assassinos e ponto”, diz Paulo Figueiredo que viria a ser condenado pela justiça francesa na sequência de um ataque a um bar, em Bayona.
A recente desclassificação de documentos, até então confidenciais, dos serviços secretos americanos reacenderam um antigo debate e confirmaram, uma vez mais, o envolvimento ativo do Governo liderado pelo socialista Felipe González na criação, armamento e operacionalização de um grupo paramilitar criado com o objetivo único de matar e semear o terror debaixo do patrocínio estatal.
O relatório, agora conhecido, fala de uma “estratégia pouco ortodoxa” e reconhece que “González acordou a formação de um grupo de mercenários, controlado pelo Exército, para combater os terroristas por fora da lei” rematando que “confirmada a participação de Madrid, as credenciais democráticas do Governo espanhol e do PSOE ficarão seriamente manchadas”.
Num contexto de elevada conflitualidade política, o Governo espanhol optou por uma estratégia que deveria envergonhar qualquer Estado que se diz democrático. A opção pela “guerra suja”, seguidora do velho dito “olho por olho, dente por dente”, passou pelo armamento de velhos grupos paramilitares de extrema-direita bastante ativos durante a Transição e, pela criação de um verdadeiro exército de mercenários que, com a bênção do Estado agiam com poucos constrangimentos e gozaram de uma impunidade criminosa.
Sequestros, torturas e assassinatos faziam parte da normal ação dos GAL que, patrocinados com dinheiro público, perseguiam qualquer pessoa cuja atividade considerassem suspeita. Movidos por um revanchismo contra o nacionalismo basco tão querido à direita espanhola, estas milícias armadas dedicaram-se à criação de um estado de violência permanente. Centenas de cidadãos, muitos dos quais sem qualquer ligação à luta armada, sofreram na pele com a face mais violenta do terrorismo estatal.
Um conjunto de investigações jornalísticas levadas a cabo por vários órgãos de comunicação social bascos a partir do ano de 1987 expuseram as perversas ligações do Governo e de altos comandos militares e policiais com os grupos paramilitares, algo que, a par de uma crescente pressão internacional, forçou uma mudança de estratégia por parte do Governos espanhol.
Perante as centenas de vítimas do terrorismo estatal aplicou-se a mesma receita da Transição: “varrer o lixo para debaixo do tapete” e assobiar para o lado
Perante as centenas de vítimas do terrorismo estatal aplicou-se a mesma receita da Transição: “varrer o lixo para debaixo do tapete” e assobiar para o lado. Nem verdade, nem justiça, nem reparação.
Pelo contrário, em setembro de 1998, Felipe González acompanhado, entre outros, por Josep Borrell, atual Alto Comissário da União Europeia, deslocava-se à prisão de Guadalajara para se despedir com um fraternal abraço do antigo Ministro do Interior José Barrionuevo e do seu Secretário do Estado Rafael Vera. Haviam sido condenados a 10 anos de prisão, após anos de investigação e perante um conjunto de provas que até para a justiça espanhola parecia não deixar outra opção. Ambos saíram passados poucos meses beneficiando de um indulto outorgado por José María Aznar.
PSOE e PP, agora auxiliados pelos ultras do VOX, acorreram a colocar mais um penso rápido numa ferida demasiado aberta
Tal como esta terça-feira no Congresso, colocados em causa os fundamentos pouco democráticos de um Estado herdeiro do aparelho franquista e filho de uma transição cuidadosamente negociada, PSOE e PP, agora auxiliados pelos ultras do VOX, acorreram a colocar mais um penso rápido numa ferida demasiado aberta.
A aposta nas GAL e no terrorismo de Estado, em geral, são mais um sintoma da histórica incapacidade do Estado espanhol em lidar com a divergência, com um projeto político alternativo e de ruptura com a ordem negociada entre a Coroa e a elite política franquista.
Franco morreu no hospital em 1975 mas muitos dos seus altos quadros na polícia, no exército e nos tribunais continuaram a exercer as suas funções com toda a proteção do Estado. Embora diferentes, o País Basco de 1983 ou a Catalunha de 2017 são sintomas de um mesmo problema: a profunda crise do Regime de 78, incapaz de romper com a natureza autoritária, ultranacionalista e centralizadora do franquismo.
É conhecida a provocatória afirmação de Felipe González, “o Estado de direito também se defende nos esgotos”. Limpar esses esgotos é condição necessária para a democratização de um Estado
Esta “guerra suja” colocou em evidência a existência de um conflito político ao qual os sucessivos Governos responderam com o reforço dos contingentes policiais e militares e com uma violência permanente. Ainda que a situação seja hoje diferente, a “guerra legislativa” movida contra partidos e líderes partidários da esquerda abertzale ou a constante judicialização de um problema de natureza política são demonstrativos da incapacidade do Estado espanhol em discutir e pensar a mudança nos moldes que seriam normais num qualquer Estado de direito democrático.
É conhecida a provocatória afirmação de Felipe González proferida durante os anos de atuação das GAL, “o Estado de direito também se defende nos esgotos” ou da sua peremptória negação de que o “senhor x” que assinava os documentos hoje desclassificados fosse ele. Limpar esses esgotos, neste caso particular reconhecer os crimes praticados pelo Estado, condenar os seus responsáveis e reparar, dentro dos possíveis, as vítimas e as suas famílias é condição necessária para a democratização de um Estado que, uma vez mais, varre o seu passado para debaixo do tapete.
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