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Ensaio sobre a Cegueira

Uma das linhas fortes do Programa de Estabilidade e Crescimento é o seu programa de privatizações. O Governo anunciou 6.000 milhões de redução da dívida pública e redução do défice (através da correspondente diminuição de juros da dívida pública) de 0,1% do défice, cerca de 170 milhões por ano. Parece um bom negócio, não é? Livramo-nos de uns monos, que só estão aí a atrapalhar, fazemos um encaixe simpático e reduzimos os encargos anuais com a dívida.

É verdade que a dívida pública seria reduzida no montante das privatizações. Mas convém não esquecer que essa receita é irrepetível e a degradação do défice começa a corroer o seu impacto no dia seguinte à sua aprovação. E convém que se tenha presente a dimensão desse impacto: estamos a falar de compensar cerca de cinco meses do aumento da dívida pública que irá ocorrer só este ano... Com que custo?

Quando o Governo fala do impacto dessa redução no défice através dos encargos da dívida pública só está a contar uma parte da história. Ao alienar muitas das empresas e participações incluídas neste programa, o Governo estará a alienar receitas que em muito ultrapassam essa diminuição de encargos. Só os dividendos que o Estado recebeu por via da magra participação que ainda mantém na EDP (110 milhões, em 2009) correspondem a quase 2/3 do que o governo tenciona poupar em encargos de dívida pública com a totalidade do programa de privatizações.

Mas mais importante é a lógica política de um programa desta natureza. Um programa em que o Estado desaparece de praticamente todos os sectores estratégicos da economia, perdendo a capacidade de articular uma estratégia para o desenvolvimento e assegurar a todos bens públicos essenciais. É uma razia ao que sobrava na energia, transportes, água, comunicações, entre outros sectores.

E abre, com a privatização do seu sector segurador, a caixa de Pandora da privatização da Caixa Geral de Depósitos, onde nem a Direita se atreveu a mexer. E isto num momento em que a CGD mostrou mesmo aos mais furiosos liberais o papel estratégico que tem de ter a presença pública no sector financeiro. Só o PS parece não ter percebido.

O que se passa com este programa de privatizações já não é miopia. Já não se trata de obter ganhos extraordinários e irrepetíveis com prejuízo de receitas futuras e instrumentos de desenvolvimento do país. Trata-se de uma política que aliena instrumentos para políticas públicas e degrada a situação das contas públicas a partir do momento imediato, no que ao défice diz respeito. É uma decisão motivada pela cegueira puramente ideológica de um Governo sem a mais pequena referência a qualquer coisa que se pareça com uma política económica socialista.

O debate público sobre estes assuntos é, infelizmente, muito reduzido. É por isso que aqueles que irão contestar estas escolhas não podem perder tempo no esclarecimento e na luta por uma política económica assente em políticas públicas exigentes. E na unidade com todos os que, como João Cravinho, ainda não perderam a cabeça. Já não falamos apenas do futuro, falamos do presente imediato. Um presente que está a ser oferecido aos privados do costume.

Sobre o/a autor(a)

Eurodeputado e economista.
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