Gostava de passear-se todas as tardes pelas ruas mais movimentadas da cidade. Todos os dias escolhia uma diferente e misturava-se entre a multidão. Caminhava em passo lento, mas firme, permitindo-se admirar cada pessoa que se cruzava consigo. “Cada uma no seu próprio ritmo, mas todas espelhando um turbilhão de emoções”, explicou-me certa vez.
Olhava sobretudo as mulheres mais jovens, talvez recordando a irreverência vivida noutros tempos, ainda sem Liberdade, mas já se sabendo livre. Ou então simplesmente para lhes transmitir a mensagem do que está guardado em todas nós: a coragem de ser-se.
Conheci-a numa dessas pastelarias de Lisboa que outrora abrigavam as vozes dos poetas e hoje vivem dos flashes de máquinas fotográficas e telemóveis que teimam entrar em todos os espaços assinalados pela senhora do posto de turismo. Eu estava numa mesa ao fundo da sala, mergulhada na leitura de uns folhetos que iriam ser distribuídos no dia seguinte. Pelo menos neste dia de março era preciso falar abertamente de escolhas e direitos, de abortos clandestinos e da vontade de cada uma. Da liberdade sexual e das condições de trabalho. Era preciso falar da vida no feminino.
Tudo isso estava naqueles papéis. Tinham sido preparados com algum tempo por um grupo de camaradas e iriam certamente despertar mais mulheres.
Ela tinha acabado de sentar-se quando fixou os olhos em mim e me perguntou se podia ver o papel pousado sobre a minha mesa. Nele jaziam já algumas manchas de café, mas estiquei-lho sem qualquer hesitação. Confesso, contudo, que crescia em mim - a passos galopantes, na verdade - uma enorme curiosidade sobre como toda esta cena iria acabar. Provavelmente esperava-me um sermão, carregado de moralismo, pela imagem ousada que tínhamos escolhido para o folheto.
Estava longe, muito longe, de imaginar que aquele momento iria alterar a minha forma de olhar e viver a minha condição de mulher. Pensava eu que já a vivia em pleno depois de tantas leituras e debates sobre política no feminino. Falta sempre tanto e a solidariedade só existe quando sai do papel e se pratica. Hoje, posso mesmo dizer que há um pedaço daquele dia em mim todos os dias.
“A sociedade continua alheada à vexação a que as mulheres estão sujeitas”, disse-me com um sorriso sarcástico ao levantar os olhos do papel. Tirou os óculos e com uma ternura sincera que parecia carregar o mundo continuou: “sentamo-nos na primeira plateia para aplaudir de pé o machismo que nos comanda desde sempre. Perpetuamos tradições e credos, mas escondemos as lágrimas atrás de máscaras por falta de audácia e determinação.”
O seu discurso parecia não terminar, como se as palavras, aquelas mesmas palavras, lhe estivessem há anos presas na garganta. Só depois percebi que apenas ilustravam o que tinha sido a sua vida desde o dia que decidira que mais ninguém lhe tocaria no corpo sem ela o consentir. Contou-me como aos 16 anos fora agredida diversas vezes por um namorado. Quando não conseguia disfarçar levava ainda mais porrada em casa por ser vadia e andar metida com vagabundos e marginais.
Ninguém se preocupou como se sentia por baixo daquelas nódoas negras. Ninguém quis saber como doíam as palavras amargas com voz de pai ou mesmo o silêncio com cheiro de mãe, a quem passou a olhar como cúmplice do cinto que lhe vergou as costas.
Tentou por termo à vida, mas faltou-lhe a coragem, como se diz por aí. Então, já que nada tinha a perder, despiu-se e passeou-se nua pelas ruas apinhadas de gente. Não via nada, nem ninguém, apenas se recorda do carro da polícia e da humilhação a que fora sujeita horas depois pela chacota de um grupo de homens fardados, vulgo senhores agentes da autoridade.
“Não tenhas pena de mim. Eu encontrei-me mulher e sei viver-me como tal. Amei e fui amada. Deixei que o prazer me tocasse e soube não ser sua escrava. Choro e rio quando tenho vontade e todos os dias me brindo.”
Aquela mulher à minha frente iluminou a sala. Não sei se somente para mim ou se outras pessoas ali o sentiram, bem como ignoro se alguma objetiva conseguiu captar a beleza daquele momento, daquela pessoa de boina grená, com batom a condizer e uma expressão tão viva de quem se sabe segura. Era mulher e isso bastava-lhe para não se deixar dominar.
O seu nome não consta nos arquivos das feministas famosas. Não escreveu livros e palestras foi na rua que as fez, entre pequenos grupos de operárias, donas de casa, prostitutas, telefonistas, lojistas. Mulheres. Mulheres à procura do seu espaço no mundo, porque na verdade só ocupavam metade ou nem isso. Quantas recebera em sua casa, com filhos e dois farrapos sujos de sangue na algibeira. Algumas conseguiram ir a salto para França e quase todas lhe escreviam assim que era possível. Tantas vezes envelopes carregando folhas onde apenas se lia a alcunha combinada, um sinal que a vida ainda continuava, mesmo que com outra identidade.
Podia gastar semanas, meses, a escrever as suas vivências (e bem merece que o faça um dia, apesar de me ter pedido para não o fazer). Partilhou muitas comigo, as do passado e as que ainda vivemos juntas, até que aquele corpo sempre lindo de mulher decidiu que chegara a hora de despedir-se. Sim, até isso foi uma opção, embora um segredo muito bem guardado, porque ainda não era o tempo de falar-se desse assunto. Não quis deixar heranças pesadas, mas em breve, espero eu, poderemos começar uma luta a sério por aí. Pela dignidade e pelo direito de escolha sobre o próprio corpo que é nosso em vida e na morte e que tantas vezes nos querem roubar e comandar, qual boneco ao serviço de um grupo de elite.
Sejamos como elas. Anónimas ou não, as mulheres que sabem viver-se mulheres.