Um desafio
Há um desafio muito concreto que gostaria de deixar aos leitores deste texto e à sociedade em geral, muito especialmente aos portuenses e a todas as pessoas que se interessam pela cultura e pelo património.
Um dos cafés mais interessantes do Porto morreu. Hoje, felizmente, ainda temos o Majestic, o Guarany, o Ceuta e outros, mas este morreu há muito. Era o Café Rialto, na esquina da Rua de Sá da Bandeira com a Praça de D. João I, ponto de encontro de artistas e intelectuais. Foi inaugurado em 1944, pleno de obras de arte. Quando fechou, as obras de arte foram retiradas. Todas menos uma, que era inamovível: uma enorme pintura mural com 5 metros de largura e mais de 3 metros de altura, uma obra-prima do grande mestre Abel Salazar a que este chamou Síntese da História.
O espaço foi tendo outros usos. Como muitos outros espaços da Baixa, um dia foi uma dependência bancária, mas o mural lá estava, magnífico, cobrindo toda a parede de fundo.
Hoje é uma loja. Para optimizar o espaço, a pintura foi totalmente coberta com uma parede que permitiu colocar mais umas quantas prateleiras. Esta é a triste situação actual.
Podemos fazer alguma coisa em relação a isto?
Penso que sim, que podemos e devemos. Mas fazer o quê?
Uma solução
A solução mais simples e rápida, respeitadora de todas as leis e normas vigentes, seria comprarmos aquele espaço. Comprarmos o espaço e oferecê-lo à Casa- Museu Abel Salazar.
A casa-museu, uma instituição de grande mérito, com um acervo fabuloso e uma actividade a todos os títulos meritória, é propriedade da Universidade do Porto. Situa-se em São Mamede de Infesta, relativamente distante do centro do Porto.
Com este espaço, poderia passar a ter um pequeno pólo na Baixa da cidade, dando maior visibilidade à obra de Abel Salazar junto do grande público. Talvez se possa chamar “Galeria Abel Salazar”. É um bom local para ter pequenas exposições temporárias em que se pode ir mostrando as várias facetas da produção do artista, uma loja onde as várias edições da casa se disponibilizam, e tudo com o esplendor de uma parede de fundo monumental com uma pintura que apenas ali pode ser vista.
Modus operandi
Não seria certamente difícil encontrar um mecenas que pudesse fazer a aquisição do espaço (é apenas uma loja), mas a minha proposta é outra. O Porto tem tradição de fazer homenagens – erguer estátuas, por exemplo – através de subscrições públicas. É um modo activo de afirmação de cidadania que nos caracteriza e diz muito da sociedade que somos e queremos ser. Uma subscrição pública para resgatar o mural de Abel Salazar seria em si mesmo uma bela homenagem a um homem que a cidade já homenageou comparecendo em massa no seu funeral, em afrontamento directo com a ditadura; já homenageou com uma estátua; já deu o seu nome a uma das escolas da Universidade do Porto. Abel Salazar ficaria certamente emocionado ao saber que a compra deste espaço com a sua pintura foi um acto colectivo e popular.
É claro que na subscrição pública contaremos não só com o cidadão que empenhadamente contribuirá com uns poucos de euros retirados do seu magro salário ou pensão, mas também com o contributo dos bancos e das empresas, do Ministério da Cultura e da Gulbenkian, da Câmara do Porto e das associações empresariais, das fundações e dos mecenas.
O ideal seria que, para receber directamente as contribuições, fosse aberta uma conta especial da casa-museu ou da sua associação para este efeito, pormenor a decidir pela própria casa-museu, pela universidade e pelo seu reitor.
A Câmara Municipal do Porto poderia ter um papel importante no contacto com o actual proprietário do espaço e na negociação das condições da transacção.
Talvez a Faculdade de Arquitectura possa assumir o projecto de remodelação do espaço e a das Belas-Artes o da sua divulgação.
Se sobrar algum dinheiro da subscrição após a aquisição (e esperemos que sobre), será para apoiar as actividades da galeria, a primeira das quais poderia ser a edição de um livro com a história desta subscrição pública e o nome de todos os que contribuíram, a quem seria oferecido um exemplar como agradecimento.
O Porto é capaz
Enfim, o que se pretende é uma mobilização geral de vontades e de capacidades de uma cidade que já mostrou que o sabe fazer sempre que é preciso.
O Coliseu está aí para o comprovar e foi uma conquista muito mais difícil do que será a pequena “Galeria Abel Salazar”. Ou o Bolhão. Ou o Batalha, que esteve quase morto e hoje brilha de novo. Se conseguimos salvar o grande mural de Júlio Pomar que o velho fascismo tapou, não deixaremos certamente de salvar também o de Abel Salazar que o moderno comércio tapou.
Artigo publicado no jornal “Público” a 26 de agosto de 2023
