Do turismo ao racionamento: O paradoxo de São Roque do Pico

porDaniela Silveira

29 de agosto 2024 - 15:56
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A política deve ouvir a ciência, que indica que as épocas secas se tornarão cada vez mais frequentes. É urgente adotar medidas políticas concretas e baseadas em dados para mitigar os impactos das mudanças climáticas e garantir a sustentabilidade dos recursos hídricos na região.

Os moradores de São Roque do Pico foram informados na semana passada, por meio das redes sociais do Município, sobre a interrupção do fornecimento de água nas habitações abastecidas pelo Reservatório do Nateiro, das 2h00 às 6h00 da madrugada. Podendo agravar-se. Essa situação não é inédita no concelho, uma vez que, há vários meses, diversas freguesias enfrentam cortes de água recorrentes, sem qualquer aviso prévio. Comunicações desta natureza devem ultrapassar a limitação de um simples comunicado nas redes sociais. É imperativo que o Município utilize também os meios tradicionais e de grande alcance, como a rádio e a televisão, para garantir que toda a população, incluindo aqueles com acesso limitado à internet, esteja devidamente informada sobre situações com impacto no seu quotidiano.

Já expressei anteriormente a minha preocupação com a incompetência deste executivo em lidar com este (e outros) problema, que foi uma das promessas eleitorais de Luís Filipe Silva. O autarca e empresário, com interesses diretos no setor do turismo, comprometeu-se a resolver esta questão durante a presente legislatura, mas não apenas falhou em cumpri-la como permitiu que a situação se agravasse ainda mais. Destaco dois momentos contraditórios apenas na primeira quinzena de agosto. No dia 2 de agosto de 2024, foi noticiado, no Jornal do Pico, com grande destaque, um investimento turístico de mais de dois milhões de euros na freguesia de Santo António. Este empreendimento, em fase de execução em uma das áreas problemáticas do concelho, onde a falta de água acontece mesmo durante o outono e inverno, prevê a criação de 108 camas. Sim, 108 camas. Apenas este empreendimento irá consumir uma quantidade significativa de água. E é importante ressalvar que este não é o único empreendimento licenciado em construção, na Capital do Turismo Rural, com muitos outros a aguardar o licenciamento por parte da Câmara Municipal de São Roque do Pico. No dia 14 de agosto de 2024, Susana Vasconcelos concedeu uma entrevista ao Jornal do Pico, na qual abordou a atual “crise hídrica” do concelho. De forma irresponsável, imprudente e leviana, apelou à população para racionar a água ao lavar os dentes ou tomar banho, e, como exemplo de boas práticas, mencionou o desligamento de dois repuxos de água e alguns duches em zonas balneares por parte do município. Se a situação não fosse tão grave, essas ações poderiam ser interpretadas como cómicas. A vereadora, responsável pelo pelouro da educação, não apresentou qualquer medida concreta de sensibilização ou consciencialização ambiental durante os últimos três anos. Assim, como o seu colega com a responsabilidade do ambiente. A resposta é clara e não requer muito esforço de memória: nada foi feito. Absolutamente nada. É um facto que a água cai do céu e que tivemos um verão excecionalmente seco, com temperaturas elevadas. No entanto, os concelhos vizinhos, Lajes e Madalena, não enfrentam a mesma gravidade da crise hídrica e até confirmaram, conforme notícia da Antena 1, que os seus reservatórios estão longe de alcançar níveis críticos. O que o leitor deve compreender é que tais situações não são meramente acidentais, mas sim consequência de decisões políticas. E que não se resolvem com paliativos bacocos. A aposta exclusiva de São Roque do Pico no turismo comprometeu a estabilidade económica do concelho, uma vez que este setor é sazonal. Além disso, afetou a fixação de jovens e famílias, dado que o mercado de arrendamento é inexistente e a oferta de empregos é precária, sazonal e com baixos salários. A atual situação lembra-me a situação do Algarve, onde se racionava água às pessoas para regar campos de golfe. Questiono então o que revelam os estudos de impacte ambiental, constantemente aprovados, que aparentemente não refletem a crise hídrica que afeta o concelho. É importante entender como esses estudos são conduzidos e se realmente fazem jus à realidade. Era importante ouvir a entidade competente pela sua aprovação. São Roque do Pico não é o único concelho a enfrentar o racionamento de água; a situação também é semelhante na vila da Calheta, na ilha de São Jorge. Diante deste cenário, é imperativo que as autoridades revejam o Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma dos Açores (POTRAA) e regulem a atividade do alojamento local. A nível regional o que sabemos é que este governo de coligação com o apoio do CHEGA irá manter a suspensão parcial do POTRAA e privilegiar a construção desenfreada, sem qualquer regulação - ver aqui Decreto Legislativo Regional n.º 13/2010/A, de 7 de abril, alterado e republicado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 17/2019/A, de 24 de julho – Determina a suspensão parcial do POTRAA. A política deve ouvir a ciência, que indica que as épocas secas se tornarão cada vez mais frequentes. É urgente adotar medidas políticas concretas e baseadas em dados para mitigar os impactos das mudanças climáticas e garantir a sustentabilidade dos recursos hídricos na região. Mas, como é habitual nos Açores, a responsabilidade morre solteira e a solução parece ser sempre recorrer, no futuro a fundos comunitários. Assim, ficamos à espera dos novos furos financiados por Ursula von der Leyen. Até lá, o que resta é a recomendação: fechem a torneira ou considerem mudar de concelho.

Daniela Silveira
Sobre o/a autor(a)

Daniela Silveira

Diretora executiva e criativa do Festival +Jazz, que conta com nove edições e do Lava - Festival Internacional de Jazz do Pico, a caminho da quarta edição. Formação base em Direito e Administração e Gestão de Empresas com especialização em Produção de Eventos e Empreendedorismo Social.
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